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Sequestros de estudantes na Nigéria deixam ideologia e viram indústria lucrativa

Pagamentos de resgates a grupos criminosos já geraram ao menos US$ 18,34 mi em nove anos

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São Paulo

Na madrugada de segunda (5), 140 alunos foram sequestrados de um internato em Chikun, na Nigéria, no mais recente ataque a escolas e o décimo em pouco mais de sete meses no noroeste do país africano.

Com o episódio, o número de sequestrados em instituições de ensino desde dezembro de 2020 chega perto de mil, e 150 deles ainda estão desaparecidos. A prática ficou comum na Nigéria, e especialistas apontam a existência de uma indústria em que criminosos lucram com a cobrança de resgates.

“A pandemia colaborou para o aumento [dos sequestros], porque as pessoas estão desempregadas, há níveis altos de pobreza no país, além de desafios relacionados a terrorismo”, afirma Hadiza Usman, da Iniciativa Empoderamento do Estado de Direito, ONG especializada em administração de segurança.

Mãe de estudante sequestrado chora durante protesto em Abuja, na Nigéria
Mãe de estudante sequestrado chora durante protesto em Abuja, na Nigéria - Kola Sulaimon - 4.mai.21/AFP

No ano passado, a Nigéria viu sua taxa de desemprego chegar a 9,1%, um salto em relação a 2015, quando esse índice era de 4,31%, de acordo com o Banco Mundial. Além da falta de trabalho, a impossibilidade de garantir a adequada qualificação e inserção dos jovens no mercado de trabalho potencializou esse tipo de atividade, segundo Carolina Galdino, especialista em segurança internacional.

Usman lembra que, no caso das 276 alunas de Chibok levadas pelo grupo terrorista Boko Haram em 2014, criminosos acompanharam as diversas negociações para recuperar as meninas e passaram a ver a prática como um negócio. Assim, o que era uma tática para impor uma ideologia —Boko Haram significa “a educação ocidental é um pecado”, na língua hausa— transformou-se em uma indústria, afirma Confidence MacHarry, analista de segurança da consultoria nigeriana SBM Intelligence.

“A motivação ideológica tem desaparecido rapidamente, e até o Boko Haram visa trabalhadores humanitários e cristãos mais pelo resgate do que necessariamente por razões religiosas.”

Um estudo da consultoria analisou o pagamento de resgates entre junho de 2011 e março de 2020 e apontou que, no período pesquisado, os sequestros geraram ao menos US$ 18,34 milhões (R$ 95,5 mi).

A maior parte desse montante, pouco menos de US$ 11 milhões (R$ 57,3 mi), foi paga entre janeiro de 2016 e março de 2020. A concentração mostra que a disseminação da prática diminuiu o valor dos resgates. Em 2020, mesmo em meio à pandemia, foram ao menos 413 sequestros, segundo o Monitor de Segurança da Nigéria, levantamento elaborado pelo think tank americano Council on Foreign Relations.

A cifra é mais do que o dobro da vista em 2018 (146), e 2021 caminha para ultrapassar o número mais recente, uma vez que apenas nos seis primeiros meses deste ano já ocorreram 301 casos.

Em pouco mais de dez anos, esses sequestros somam cerca de 1.600 episódios, com mais de 9.000 vítimas —número que pode ser ainda maior, pois em muitos casos a quantidade exata de pessoas sequestradas não é especificada. Os casos são mais predominantes no norte do país, mas ganharam força também na região sul, onde os ataques têm alvos mais definidos, explica MacHarry, da SBM.

Com a explosão de sequestros, há registros de pedidos elevados de resgate. Em Chikun, há pouco mais de dois meses, 22 alunos e três funcionários foram levados da Universidade Greenfield, e o valor demandado foi de 800 milhões de nairas nigerianas (R$ 10,1 milhões). Após assassinarem cinco estudantes, os sequestradores ameaçaram matar outros 17 caso o governo não enviasse 100 milhões de nairas nigerianas (R$ 1,3 milhão), além das 55 milhões de nairas nigerianas (R$ 700 mil) já pagas pelos pais.

O caso se desenrolou por 40 dias, e os alunos que permaneceram sob custódia foram libertados, sem que as condições para tal ficassem claras. O governo não costuma pagar os resgates, mas dirigentes locais muitas vezes se veem pressionados pela população e acabam cedendo aos pedidos, explica Usman.

Em publicação no fim de fevereiro, o presidente do país, Muhammadu Buhari, disse que os governadores deveriam rever a política de “recompensar bandidos com dinheiro e veículos”. “Tal política tem o potencial de produzir o efeito oposto, com consequências desastrosas.”

Há também casos, como o da Universidade Greenfield, nos quais os pais se unem para reunir a quantia. Em Kaduna, que soma ao menos 168 incidentes desde 2011, o mais alto índice entre os estados nigerianos, o governador Nasir Ahmad El Rufai adotou uma política linha-dura e ameaçou multar quem fizer pagamentos. “Existe o esforço macro do governo federal, mas ele tem que lidar com os governos locais, que acabam muitas vezes potencializando esses grupos”, explica Galdino.

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Além de gerar impacto emocional para pressionar o pagamento dos resgates, as escolas também são alvos desejados porque dispõem de pouca infraestrutura de segurança, pontua o pesquisador da SBM. Enquanto funcionários responsáveis pela proteção dos estabelecimentos não possuem armas, os criminosos chegam com armamentos pesados e conseguem invadir os locais com facilidade.

Já escolas privadas, por terem mais verba, têm investido em empresas de segurança, mas há regiões onde locais de ensino foram fechados porque o governo não consegue garantir a proteção dos estudantes.

A situação se torna cada vez mais grave, e 80% dos entrevistados em uma pesquisa do Corpo de Segurança e Defesa Civil da Nigéria disseram avaliar as escolas do país como inseguras. O temor de frequentar a sala de aula se torna então mais um fator no já complicado contexto educacional do país. Em 2018, 27,6% das crianças entre 4 e 11 anos estavam fora da escola, taxa que subia para 32,6% no ensino médio (16 a 18 anos), de acordo com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).

​Gideon Olanrewaju, que lidera a organização sem fins lucrativos Iniciativa para Ajudar o Acesso na Educação Rural (Areai, na sigla em inglês), sublinha também a dificuldade de acesso físico às escolas, causada por diferentes fatores, como pobreza, localização, desigualdade de renda e, claro, insegurança.

“Tivemos várias escolas fechadas como resultado da Covid-19, em março de 2020. Em outubro, elas reabriram, e os sequestros continuaram”, explica o ativista. “Quando isso aconteceu, muito estados adotaram como resposta um lockdown total das escolas no norte da Nigéria.”

Ele chama a atenção para a necessidade de investimento em alternativas de ensino remoto, já que, além do vírus, muitos pais não querem a volta dos alunos a escolas que já foram atacadas, o que pode elevar ainda mais a evasão escolar. Por outro lado, o acesso à internet na Nigéria é caro, e a conexão, instável.

As verbas para educação, no entanto, caíram para o equivalente a 5,8% do orçamento nacional neste ano, abaixo da média de 7% nos últimos cinco anos. “O que um governo vulnerável pode fazer? A ideia fundamental seria investimento em educação, mas os resultados não são imediatos”, afirma Galdino. “O ideal seria o governo trazer à tona um cenário de aumento de confiabilidade para atrair investimentos, inclusive estrangeiros, para inserir a população no mercado de trabalho.”

Para MacHarry, porém, a crise de segurança foi além do que o país pode controlar. Ele defende uma reforma econômica para alavancar o desenvolvimento, além de mais autonomia aos estados para lidar com suas questões internas. O estudo da SBM alerta para a necessidade de tratar a crise como emergência nacional, porque a situação “ataca a legitimidade dos anseios democráticos do país”.

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