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Alexander Iakovenko

Será que os EUA mudarão as relações com a Rússia?

Ao analisar origens da atual tensão internacional, é preciso admitir que há uma crise da diplomacia

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Alexander Iakovenko

Ex-embaixador russo no Reino Unido, é reitor da Academia Diplomática do Ministério dos Negócios Estrangeiros da Federação da Rússia

O sistema de governança global e as relações internacionais em geral, que de acordo com as recentes previsões devem mergulhar na imprevisibilidade, estão realmente chegando depressa a essa condição. Como tudo na comunidade mundial, essa tendência é bastante artificial.

Foi fácil chegar a isso: bastava acabar com o principal meio de comunicação internacional —a diplomacia— e substituí-lo por qualquer coisa, desde as tentativas de impor ditames até a propaganda ideologizada disfarçada de “diplomacia pública”. A comunicação entre os Estados parece existir, mas não os conecta de verdade, já que visa agradar a opinião pública doméstica e internacional em vez de perseguir o resultado final na forma tradicional de compromissos e acordos.

Vladimir Putin, à esq., e Joe Biden se cumprimentam antes de encontro em Genebra, na Suíça
Vladimir Putin, à esq., e Joe Biden se cumprimentam antes de encontro em Genebra, na Suíça - Brendan Smialowski - 16.jun.21/AFP

Portanto, ao analisar as origens da atual crise internacional, antes de tudo uma crise nas relações entre o Ocidente e a Rússia, é preciso admitir que há uma crise da diplomacia. Não foi uma crise que se deu de imediato, mas que gradualmente levou o mundo para a situação atual, cujas raízes devem ser procuradas na Guerra Fria e nos seus imperativos geopolíticos e ideológicos.

A Guerra Fria, por meio do inerente confronto ideológico, distorceu gravemente o recém-criado sistema das Nações Unidas, alicerçado no princípio da unanimidade dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Ao longo do tempo, isso teve diversas manifestações, seja por meio de uma “máquina de votação” ocidental na Assembleia Geral da ONU nas primeiras etapas ou dos ditames da maioria da União Europeia na OSCE (Organização para Segurança e Cooperação na Europa) e no Conselho Europeu.

Mas o efeito sempre foi e permanece o mesmo: são minados os princípios westfalianos duramente conquistados pela Europa como resultado da triste experiência das Guerras Religiosas, incluindo a dos Trinta Anos, que levavam os desacordos religiosos (hoje chamados de ideológicos) para fora do quadro das relações entre os Estados.

Ao mesmo tempo, a diplomacia clássica, relembrada mesmo pela parte americana nos tempos da política de “reset” entre a Rússia e os Estados Unidos, continuava funcionando durante a Guerra Fria, embora num formato reduzido. Foi essa a lógica da criação dos fundamentos do mundo pós-guerra com os desastres da guerra ainda vivos na memória das elites e dos povos. Foi imprescindível o papel da diplomacia para o equilíbrio do mundo bipolar e para a estabilidade estratégica.

O exemplo mais notório desse imperativo pragmático foi a política de desanuviamento, com seus acordos de controle de armas e outras realizações, incluindo a revitalização da política europeia. Nesse período foi alcançado o desenvolvimento institucional do sistema internacional, com papel central da ONU, em que os Estados Unidos e seus aliados apreciavam seu status privilegiado não menos que a URSS e depois a RPC.

Foi acordada uma ampla série de instrumentos universais, incluindo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Pactos dos Direitos Humanos, bem como outros documentos nas áreas de não proliferação de armas de destruição em massa, do espaço exterior, do estatuto da Antártica e do Direito Marítimo.

A situação mudou drasticamente com o fim da Guerra Fria e a dissolução da União Soviética. A combinação desses eventos levou o Ocidente a conduzir a política no espírito do “fim da história”. E se Francis Fukuyama admitiu o erro de seu conceito, as elites do Ocidente seguiram implementando a política do “momento unipolar”, desconexa da realidade e fadada a levar a uma decepção dolorosa, cujos resultados continuam a ser colhidos pela comunidade internacional até hoje.

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Na era da Guerra Fria, a diplomacia foi uma necessidade, embora distorcida por disciplina em blocos político-militares e rivalidade ideológica. Nos últimos 30 anos, temos testemunhado atividades dos países do Ocidente destinadas a minar os alicerces da ordem mundial pós-guerra, a privatizá-la, e, como consequência, a destruí-la. Quando o Conselho de Segurança da ONU não autorizou o uso da força contra o Iraque, o presidente George W. Bush declarou que a “única superpotência” não podia ser restringida pelos limites do direito internacional!

Apesar dos resultados deploráveis do período que pode ser chamado de “solidão geopolítica” dos EUA, essa síndrome conquistou a imaginação das elites de outros países ocidentais. Se em relação à guerra no Iraque, a França e a Alemanha (que na época ocupava o lugar de membro não permanente no Conselho de Segurança da ONU) atuaram junto com a Rússia como dissidentes, agora podemos observar a unanimidade dos países do Ocidente na defesa de uma tal “ordem baseada em regras” (“rule-based order”).

O significado desse conceito é desconhecido, mas está claro que ele se baseia na visão de que a ordem mundial pós-guerra, com suas instituições e mecanismos universais, não existe mais. Dá para perceber, pelo comportamento e pela “linguagem corporal” dos países ocidentais, que trata-se da sua reivindicação do direito de autorizar as ações de seus rivais geopolíticos, ou seja, de uma fonte qualitativamente nova da legitimidade nos assuntos internacionais.

É difícil entender como essa arbitrariedade pode coexistir com o direito internacional. Antigamente era chamado de império e ditadura. Agora, essa nova “ordem” está sendo embasada ideologicamente na tese da “batalha entre democracia e autoritarismo”, que seria a essência dos nossos tempos —da mesma forma como as lideranças soviéticas buscavam a chave ideológica para aquela época na fórmula da coexistência pacífica. No entanto, ao contrário do Ocidente, Moscou ao menos atribuía um papel fundamental à diplomacia, na forma em que foi praticada desde sempre.

Hoje, quando tentam traçar paralelos com a Guerra Fria, ignoram essa diferença fundamental da situação atual, que é mais capaz de levar a consequências imprevisíveis para a paz e para a segurança internacionais. A recusa da diplomacia, em outras palavras a recusa do diálogo sob pretextos ideológicos inventados, parece segura quando não leva à guerra. Mas a guerra está sendo travada —uma guerra híbrida, com pressão de sanções, propaganda hostil e vários tipos de acusações infundadas.

Antigamente qualquer um desses elementos —para não falar de insultos pessoais a líderes— era suficiente para declarar guerra. Essa hostilidade corriqueira desorienta as elites ocidentais cansadas, cria a ilusão da possibilidade de uma informal remodelação radical do mundo conforme seus interesses e seu conforto psicológico da infalibilidade, algo parecido com o lema soviético: “Camaradas, vocês seguem o caminho certo!”. É difícil buscar provas mais convincentes da crise intelectual das elites ocidentais do que esses lemas repetidos como feitiços mágicos.

As ideias da parte mais realista da comunidade de especialistas vão no sentido do retorno à diplomacia.

Assim, no seu artigo recente bastante volumoso na renomada revista Foreign Affairs, os peritos não menos renomados Richard Haass e Charles Cupchan apelam a Washington para se preparar para a chegada de um “mundo multipolar e ideologicamente heterodoxo” (que, na realidade, já chegou).

Eles propõem a ideia de criação de um fórum informal de grandes potências –um grupo de contato global (que incorporaria China, UE, Índia, Rússia, EUA e Japão com seus 70% do PIB mundial)–, a exemplo do Concerto da Europa, estabelecido por iniciativa da Rússia no Congresso de Viena, em 1815.

A própria ideia de evocar a experiência histórica de criação de um sistema inclusivo de segurança coletiva, como, aliás, a tentativa de elaborar uma grande estratégia pragmática para a política externa dos EUA, mesmo apresentada como uma ferramenta de manutenção da liderança americana, não deixa de causar uma certa empatia.

O único problema é que nem todos vão querer aderir à tal “mesa diretora de governança global”, cuja criação vai de certa forma envenenar a atmosfera geral da política mundial ao causar desconfiança. É mais prático não sacudir os alicerces, mas agir no âmbito do sistema estabelecido que ainda não esgotou os seus recursos.

As lições da Segunda Guerra Mundial bem como da Guerra Fria continuam relevantes. É esse o objetivo da iniciativa de Moscou de realizar o encontro dos líderes dos cinco países —membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU—, convite que não foi recusado por nenhum desses Estados.

Espera-se que os ajustes da política externa dos EUA promovidos pelo governo de Joseph Biden se estendam às relações com a Rússia. E os parceiros europeus dos EUA, saudosos da liderança americana durante o período de Donald Trump, apoiarão essa tendência da política global e não criarão obstáculos.

O resto o tempo cuida.

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