Descrição de chapéu talibã Ásia terrorismo

Afeganistão volta a ser palco de retirada aérea, 92 anos após sediar a 1ª da história

Durante dois meses, britânicos transportaram 586 pessoas para fugir da guerra civil em Cabul

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São Paulo

Uma guerra civil envolvendo facções tribais rivais e o governo engolfa o Afeganistão, forçando ocidentais morando em Cabul a fugir do país por meio de uma improvisada operação de retirada aérea.

Para o deleite dos aderentes, nietzschianos ou religiosos, do conceito do eterno retorno, o parágrafo acima não resume necessariamente a vertigem de acontecimentos no país asiático desde que o Talibã voltou ao poder, há duas semanas.

Britânicos se preparam para embarcar em um biplano Vickers Victoria no aeródromo de Sherpur, durante a evacuação de Cabul em 1928 e 1929
Britânicos se preparam para embarcar em um biplano Vickers Victoria no aeródromo de Sherpur, durante a evacuação de Cabul em 1928-29 - Imperial War Museum

Trata-se da descrição da primeira evacuação aérea da história, ocorrida há 92 anos e 7 meses em condições incrivelmente semelhantes.

Naquele 1928, o Afeganistão era uma turbulenta monarquia, convulsionada pelas divisões étnicas vivas até hoje. Não existia o Talibã, mas havia os Saqqawistas.

Assim como os rebeldes pashtuns, eles emprestavam seu nome de Bacha-ye Saqao, o "filho do carregador de água", apelido singelo de um bandido vicioso chamado Habibullah Kalakani. Ele liderou diversas tribos contra o rei afegão, Amanullah, numa guerra civil violenta.

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O emir, como o rei era chamado, havia voltado de um giro europeu com diversas ideias modernizantes. Queria implantar um Parlamento e instaurar eleições universais, algo que só foi acontecer no Afeganistão em 2004, sob a ocupação americana do pós-11/9.

Naturalmente, as propostas não foram muito bem recebidas pela miríade de tribos tradicionalistas do país, algumas fortemente influenciadas pelo islã. Quando atacou uma guarnição de Saqao, em Jalalabad, usou aviões velhos pilotados por russos que haviam fugido da Revolução de 1917.

A acusação de infiel colou no rei, e a situação deteriorou.

Um Vickers Victoria e dois deHavilland DH-9A que participaram do primeiro voo de evacuação estacionados em Peshawar, então na Índia Britânica
Um Vickers Victoria e dois deHavilland DH-9A que participaram do primeiro voo de evacuação estacionados em Peshawar, então na Índia Britânica - Imperial War Museum

Os combates chegaram até perto da Legação Britânica, a representação diplomática que ficava fora do centro da capital. Saqao prometeu ao embaixador, sir Francis Humphry, que nada ocorreria aos ocidentais —nada muito diferente de talibãs dizendo que são moderados agora.

Como os ocidentais de 2021, Humphry achou melhor ir embora. As lembranças britânicas na região não eram das melhores, tendo Londres sido expulsa de vez em 1919.

Como a mesma e única saída para a Índia Britânica, a leste, estava interditada pela guerra civil, restou ao velho diplomata uma solução ousada: voar, em pleno inverno congelante, para a segurança em Peshawar —uma frase que ocidental nenhum diria hoje sobre a capital das áreas tribais paquistanesas.

A Força Aérea Real, vitoriosa na Primeira Guerra Mundial, ainda era incipiente. Seus únicos aviões de transporte maiores para passageiros eram grandes biplanos bimotor Vickers Victoria, para até 25 pessoas.

Só que, fora da Europa, eles só estavam baseados no Iraque. Humphry convenceu os superiores a transferir cerca de dez aviões para a Índia, numa viagem excruciante com nove paradas para reabastecer.

No dia 23 de dezembro de 1928, depois de alguns voos de reconhecimento, o primeiro grupo de 23 mulheres e crianças andou por uma hora pelas ruas de Cabul até chegar ao aeródromo de Sherpur, construído sobre as ruínas de uma antiga fortaleza num ponto em que hoje há um bairro de abastados na capital.

Havia um Victoria e dois aviões de apoio, para levar as bagagens. O desafio logístico era enorme: em meio a temperaturas sub zero e nevascas, os aparelhos podiam ir a cerca de 1.800 m de altitude, numa região em que montanhas lambem os 4.000 m.

O caminho mais óbvio era seguir voando a rota Peshawar-Jalalabad-Cabul, a mesma até hoje, passando entre paredões de montanhas do passo Khyber, cenário de tantos massacres de europeus no caminho para o que hoje é o Paquistão. O problema eram os rebeldes abaixo, atirando no que viam.

Esperando o primeiro reconhecimento da equipe voadora, os funcionários da Legação escreveram com lençóis nos gramados: "Voe alto. Tudo bem [aqui]". O pouso, afinal, teria de acontecer em outro ponto.

A retirada, como agora, também envolveu alguns dignitários ocidentais de outros países, contam Anne Baker e Ronald Ivelaw-Chapman no relato histórico "Asas sobre Cabul" (1975). Alguns apareciam com vários casacos de pele, um sobre o outro, tendo de ser espremidos para dentro das apertadas fuselagens de lona.​

Em 14 de janeiro, Amanullah abdicou e, depois de um nano-reinado de três dias do sucessor, Saqao tomou o poder e virou Habibullah Khan, emir do Afeganistão. Como é tradição na turbulenta história do país, não fez mais do que um verão: em 13 de outubro foi deposto por militares e, no dia 1º de novembro, foi executado aos 38 anos.

Já a história da retirada teve final feliz. Acertados com Saqao, numa negociação com ecos nas conversas atuais entre EUA e Talibã sobre o aeroporto de Cabul, os britânicos executaram um feito.

Após o último voo com sete Victorias e outros aparelhos em 25 de fevereiro, encerraram a ação transportando 586 pessoas e 110 toneladas de bagagens. Foram 84 missões, totalizando 45 mil km voados.

Desafiando as comparações históricas, ninguém morreu ou ficou ferido. Na caótica operação de saída atual, que de todo modo já retirou mais de 100 mil pessoas de Cabul, quase 200 perderam a vida no atentado da quinta (26), fora mais de 20 mortos em confusões anteriores.

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