Descrição de chapéu The New York Times

Entre medo, desesperança e mortes, afegãos tentam escapar de Cabul sob Talibã

Relatos incluem ameaças e pisoteamentos; região do aeroporto vive caos há uma semana

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David Zucchino
The New York Times

Na manhã do sábado (21), uma ex-intérprete de uma empresa americana em Cabul, mergulhou numa massa humana grande diante de uma entrada do aeroporto de Cabul, acompanhada de sua família.

Enquanto era empurrada e acotovelada pelas pessoas na multidão, ela foi avançando como podia, desesperada para conseguir um voo para sair do país para todos que a acompanhavam: seu marido, sua filha de dois anos, seus pais deficientes físicos, três irmãs e um primo.

Então a multidão aumentou. A família inteira foi empurrada ao chão. As pessoas os pisotearam, recordou a mulher horas mais tarde. Ela se lembra de alguém quebrando seu celular e outra pessoa lhe dando um chute na cabeça. Ela não conseguia respirar. Tentou arrancar sua abaya, uma túnica longa e solta.

Esforçando-se para ficar em pé, procurou sua filha pequena. A menina estava morta. Fora pisoteada. “Senti puro terror”, contou a mulher, entrevista por telefone de Cabul. “Não pude salvar minha filha.”

Na expectativa de deixar o país, pessoas se reúnem do lado de fora do aeroporto internacional de Cabul, no Afeganistão - Jim Huylebroek -20.ago.2021/The New York Times

Depois de sofrer 20 anos de guerra e atentados suicidas, os afegãos vêm enfrentando uma realidade nova e apavorante nos seis dias passados desde que o Talibã assumiu o poder no Afeganistão.

Seu mundo foi posto de ponta-cabeça, e algo tão prosaico quanto um deslocamento até o aeroporto hoje inspira terror. Colocar os pés para fora de casa pode ser assustador e desorientador.

Em todo o país, afegãos que auxiliaram o esforço militar dos EUA ou o ex-governo afegão apoiado pelos EUA se escondem. Muitos foram ameaçados de morte pelo Talibã. Segundo ONGs de direitos humanos, homens armados andam de porta em porta procurando “colaboradores” e ameaçando familiares.

Um afegão de 39 anos, ex-intérprete de militares americanos e entidades humanitárias ocidentais, estava escondido em uma residência em Cabul no sábado com sua esposa e dois filhos. Contou que os talibãs lhe haviam telefonado, dizendo: “Enfrente as consequências. Vamos matá-lo”.

O intérprete disse que, depois de uma tentativa exaustiva, desesperadora e fracassada de passar por talibãs armados e multidões descontroladas no aeroporto, no dia anterior, ele desistiu de tentar encontrar lugar em um voo para sair do país. Passa seu tempo telefonando e enviando mensagens de texto a soldados e oficiais americanos nos EUA que estão se esforçando para encontrar maneiras de resgatá-los. “Estou perdendo a esperança”, disse ao telefone. “Talvez eu seja obrigado a aceitar as consequências.”

Outro ex-tradutor para as forças americanas também estava escondido em Cabul. Ele também revelou que, após duas tentativas apavorantes de chegar ao aeroporto, abandonou qualquer esperança de conseguir um voo para ele, sua esposa e o filho pequeno deles. “Perdi a esperança. Perdi a confiança no governo americano, que não para de repetir ‘vamos evacuar nossos aliados’. A evacuação é impossível.”

Os afegãos que se concentram em multidões diante da entrada do aeroporto tendem a entrar em pânico cada vez que uma bomba de gás lacrimogêneo é jogada ou que tiros são disparados no ar para dispersar as multidões, contou o ex-intérprete. “Seu filho pode ser pisoteado”, disse ele. “Se os Estados Unidos me derem o universo inteiro depois de eu perder um filho, não valerá nada.”

Lá Fora

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No bairro de Shar-e-Naw, em Cabul, uma jornalista afegã disse que finalmente se aventurou a sair à rua depois de ficar escondida dentro de casa desde o domingo passado (15). Procurando obedecer as regras impostas aleatoriamente pelo Talibã às mulheres, usou uma abaya cobrindo seu corpo inteiro.

“Era tão pesada que me deu enjoo”, disse ela. Nas ruas “não há música, não há nada". "A única coisa que se ouve são os talibãs falando nas TVs e nos rádios.”

A jornalista contou que sua cunhada apareceu diante de homens de sua família com os cabelos descobertos. Seu cunhado a chutou agressivamente e mandou: “Ponha seu maldito véu!”.

Também estava escondido um policial que trabalhara para o Ministério do Interior e viu combatentes do Talibã vasculhando a sede do ministério, examinando documentos contendo informações detalhadas sobre os funcionários. Ele temia que os talibãs viessem procurá-lo.

“Cabul virou uma cidade dominada pelo medo”, disse ele.

Afegãos se aglomeram em área próxima a portão de entrada do aeroporto de Cabul, na esperança de conseguir entrar e embarcar em um voo para deixar o país - Rahmatullah Alizadah - 22.ago.21/Xinhua

Na província de Kunar, no leste do país, um jornalista contou que estava escondido dentro de sua casa, com medo de mostrar o rosto. Na época em que o governo controlou a província, ele fez reportagens sobre atrocidades cometidas pelo Talibã. Agora os talibãs estão no comando e à caça de jornalistas, segundo ele. “Os talibãs vão me matar e matar pessoas de minha família, assim como já mataram colegas meus.”

Na província oriental de Khost, outro jornalista também estava escondido, deslocando-se entre sua casa e a de um parente. Combatentes do Talibã avançavam rapidamente pela província em veículos fornecidos pelos EUA e tomados das forças de segurança afegãs, contou. O jornalista temia que os talibãs o encontrassem em pouco tempo. “Não tenho mais esperança”, disse ele. “Rezem por mim.”

Em Cabul, a mulher cuja filhinha foi morta disse que a família pudera trazer o corpo da criança de volta para ser sepultado. Chorando, recordou como tentava acalmar o medo de sua filha sempre que se ouviam tiros em seu bairro: dizia a ela que eram “bombinhas” –petardos. “Minha nenê era uma criança tão corajosa!”, comentou ela. “Quando ouvia os disparos, ela gritava ‘bombinhas!’.”

A mulher disse que dificilmente ela e sua família tentarão voltar ao aeroporto nos próximos dias. “Prefiro morrer uma morte digna aqui em casa que morrer de maneira tão indigna.”

Na casa em Cabul onde o ex-intérprete de 39 anos estava escondido, a esperança estava morrendo. O homem disse que estava grato pelos esforços persistentes feitos por soldados americanos que ele serviu no passado para ajudá-lo, mas concluiu que não havia nada que pudessem fazer.

“Se os talibãs me matarem, ok, posso aceitar isso. Peço apenas que poupem meus filhos”, disse.

Tradução de Clara Allain

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