Descrição de chapéu Coronavírus

Às vésperas das Paraolimpíadas, Japão tem recorde de casos de Covid e falta de leitos

Oposição critica diretriz de tratamento em casa; Jogos começam nesta terça

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Toyohashi (Japão)

Grávida de 8 meses, Yumi ligou para a emergência em Kashiwa, na província de Chiba (a 40 km de Tóquio), após ter um sangramento no dia 17. Uma ambulância atendeu ao chamado, mas não conseguiu encontrar um hospital a tempo. Ela foi obrigada a dar à luz em casa, mas o bebê, prematuro, não resistiu.

Na casa dos 30 anos e com diagnóstico de Covid-19, Yumi não estava se tratando em um hospital porque nem todas as instalações médicas da região estão habilitadas para internar gestantes nessa condição nem para realizar cesáreas e isolar recém-nascidos relacionados a casos de coronavírus.

O caso dela é um dentre mais de 45 mil japoneses com Covid orientados a fazer algum tratamento em casa. Após as Olimpíadas de Tóquio, encerradas em 8 de agosto, o Japão vive uma alta de infecções impulsionada pela variante delta, com a disparada de casos graves e a sobrecarga do sistema médico. Neste mês, o premiê Yoshihide Suga determinou que hospitais admitam apenas pacientes com quadros muito graves, que precisam de tratamento intensivo e uso de respiradores artificiais.

Voluntário se arruma na Vila Olímpica, em Tóquio, entre o logo das Paraolimpíadas e um cartaz com alertas para a prevenção contra a Covid - Issei Kato - 23.ago.21/Reuters

“Dizem que é tratamento em casa, mas na verdade é abandono em casa”, criticou o parlamentar Yukio Edano, líder da oposição, depois de o governo oficializar a diretriz.

Como Yumi, Yukie, na casa dos 40 anos, não conseguiu atendimento a tempo na capital. Diabética e com sintomas como febre e tosse, ela recebeu o diagnóstico no dia 10 e foi orientada a se tratar em casa, junto ao marido e ao filho, também infectados. Dois dias depois, o quadro piorou e ela morreu.

Kenji, na faixa dos 50, precisou bater à porta de mais de cem instituições médicas de Tóquio até conseguir um leito. Ele estava se recuperando da Covid-19 em casa, mas precisou ser internado pois não estava conseguindo respirar –a ambulância levou mais de cinco horas para encontrar um hospital apto a admiti-lo.

Yumi, Yukie e Kenji são nomes fictícios: a identidade dos três não foi revelada pelas autoridades –a NHK, empresa de mídia estatal nipônica, reportou os três casos.

“As alas destinadas à Covid-19 estão quase que totalmente ocupadas [80%], principalmente na região metropolitana de Tóquio”, relatou à Folha Haruka Sakamoto, pesquisadora do departamento de políticas de saúde global da Universidade de Tóquio.

Lá, cerca de 60% dos que ligaram para a emergência em busca de ajuda devido ao agravamento de sintomas durante o tratamento domiciliar não tiveram acesso a hospitais. “É uma situação séria.”

A Agência de Administração de Desastres e Incêndios passou a contabilizar casos suspeitos de Covid-19 levados por ambulâncias e recusados por pelo menos quatro hospitais. Na última semana de julho, foram 991; na primeira semana de agosto, 1.387; na seguinte, 1.679.

“As Olimpíadas já passaram, então ninguém mais precisa fingir que está tudo ok”, ironizou o produtor italiano Cesare Polenghi, de uma agência que promove o futebol na Ásia, num fórum de discussões sobre a pandemia no Japão no Facebook.
Esta semana, porém, marca o início das Paraolimpíadas, cuja abertura está marcada para esta terça (24). Na capital, a situação foi descrita como calamidade pelo painel de especialistas do Ministério da Saúde local. No último dia 18, 27 das 47 províncias japonesas registraram recordes de casos; 13 das quais estão sob estado de emergência até 12 de setembro.

Desde o início da pandemia, o Japão contabiliza 1,3 milhão de casos e 15,5 mil mortes. A vacinação está avançando (até o dia 19 de agosto, 40% da população japonesa já havia sido inteiramente imunizada), mas não o bastante para conter a onda atual. Dos 238 mil casos ativos no arquipélago, mais de 7.000 são considerados críticos.

O Japão possui 12,98 leitos para cada 1.000 habitantes, a maior média per capita entre os países desenvolvidos, de acordo com dados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), mas a maioria é para doenças leves —são apenas cinco leitos de UTI por 100 mil habitantes.

“É um quadro que talvez possa surpreender os brasileiros, que muitas vezes imaginam o Japão como um país de primeiro mundo, onde todos teriam acesso garantido a atendimento. Na verdade, não há um sistema nos moldes do SUS, e os hospitais japoneses particulares podem recusar pacientes”, diz a psicanalista paulista Carine Sayuri Goto, radicada em Higashine (província de Yamagata).

Profissional de saúde cuida de pessoa internada com Covid, com suporte de respiração, em hospital de Yokohama, no Japão
Profissional de saúde cuida de pessoa internada com Covid, com suporte de respiração, em hospital de Yokohama, no Japão - Yasuyoshi Chiba - 8.ago.21/AFP

No Japão, todos os residentes devem se cadastrar e contribuir mediante impostos com um seguro público, como Kokumin kenko hoken (seguro de saúde) ou Shakai hoken (seguro social), que cobre 70% das despesas médico-hospitalares. Os 30% restantes são pagos pelo paciente diretamente às instituições médicas. Ou seja, o modelo é público, mas não inteiramente gratuito como o SUS, no Brasil, já que a maioria das instituições é particular (70%).

Dos 3.008 hospitais particulares na ativa, apenas cerca de 30% conseguem atender pacientes com Covid-19. Isso quer dizer que um hospital pode recusar internações se não tiver vaga na ala reservada para a doença –mesmo se tiver leitos disponíveis em outras.

Nos últimos dias, ao menos nove províncias decidiram montar “estações de oxigênio”, instalações provisórias em locais como hotéis e ginásios para ajudar quem não conseguiu leitos em hospitais.

Também há relatos de médicos que decidiram levar por conta própria oxigênio de clínicas para a casa de pacientes com quadros de febre de 40ºC e nível de oxigenação a 89% (considerado grave). Segundo Goto, a possibilidade de ser recusado por hospitais agrava a sensação de insegurança na pandemia, principalmente para imigrantes.

“Imagine que você está com febre e sentindo falta de ar, mas vive a dúvida de não conseguir ser acolhido por uma clínica a tempo? Fora a barreira da língua, para quem não domina o japonês e precisa de tradutores para relatar o que está sentindo ao médico. Isso intensifica a sensação de estar desamparado”, assinala a psicóloga do Amae Institute, que atende brasileiros no Japão.

“Todo mundo está à flor da pele”, diz a tradutora paranaense Virginia Yumi Oshima, 50, que mora em Komaki, na província de Aichi.

Autora do “Multilingual Medical Conversation”, glossário multilíngue de assuntos médicos, ela integra uma cooperativa de intérpretes e tradutores aberta para atender imigrantes em 2016.

Desde o início da pandemia, eles têm sido muito procurados por brasileiros em busca de ajuda para pedir auxílio financeiro ao governo e de informações traduzidas sobre a situação dos surtos.

“Escrevi mais mensagens de ‘meus pêsames’ do que de ‘feliz aniversário’ neste ano.”

Lá Fora

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Nas cidades onde há muitos imigrantes, órgãos oficiais muitas vezes publicam informações importantes traduzidas para idiomas como inglês, filipino e português.

Toyohashi, na província de Aichi, é uma delas. “A variante delta, com alta contagiosidade, está se espalhando pelo território japonês”, publicou o prefeito Asai Yoshitaka, em carta urgente endereçada à cidade no dia 17. “E estou com uma sensação forte de perigo.”

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