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China marca 70 anos de anexação do Tibete com pressão para assimilação do Partido Comunista

Reencarnações de Buda precisam de aval do governo na região, que teve salto econômico

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São Paulo

Aos pés do Palácio Potala, lugar sagrado do budismo tibetano e antiga residência do dalai-lama em Lhasa, cerca de 10 mil pessoas se reuniram na última quinta (19), em frente a um pôster do líder chinês Xi Jinping, para comemorar os 70 anos da reanexação do Tibete pela China. Ou o que o discurso oficial em Pequim chama de libertação.

Libertação "das trevas para a luz, do atraso para o progresso, da pobreza para a prosperidade, da autocracia para a democracia e do fechamento para a abertura", disse Wang Yang, membro do alto escalão do Partido Comunista Chinês, em discurso para a multidão que acompanhava o evento.

Evento na última quinta (19) em Lhasa, capital do Tibete, para comemorar os 70 anos da reanexação à China, aos pés do Palácio Potala - Sun Ruibo/Xinhua

A única menção ao expoente mais célebre da região, o dalai-lama, foi sobre "a discriminação étnica" e "as atividades separatistas e de sabotagem cometidas pelo grupo de dalai".

Muito antes de a China ser pressionada internacionalmente quanto à forma como lida com as regiões de Xinjiang, Hong Kong e Taiwan, o Tibete foi, por décadas, uma das grandes dores de cabeça da diplomacia de Pequim, dada à amplitude internacional da voz de Tenzin Gyatso, o atual dalai-lama (nome do líder político-religioso do budismo tibetano), que venceu o Nobel da Paz em 1989. Ele vive no exílio desde 1959, quando saiu da China pressionado, depois de oito anos da ocupação comunista da região.

O Tibete havia conquistado autonomia em 1912, em meio ao turbulento período do fim do império Qing e da proclamação da República na China, até ser retomado novamente em 1951. "O destino do Tibete sempre foi, de certa maneira, vinculado ao da China. Nunca foi um Estado totalmente independente. Tanto é que não teve assento na ONU nos seis anos entre a criação do órgão e a reanexação", diz o embaixador Luiz Augusto de Castro Neves, vice-presidente emérito do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Com o debate internacional pela independência do Tibete adormecido pelo menos desde 2008, quando ativistas aproveitaram as Olimpíadas de Pequim para organizar protestos em massa, o governo chinês agora pressiona por mais assimilação comunista da região.

"Esforços de todos os lados devem continuar para ensinar as formas-padrão da língua chinesa falada e escrita. Devemos promover e compartilhar símbolos e imagens da nação chinesa entre todos os grupos étnicos e, assim, criar uma fonte de inspiração para toda a nação", discursou Wang.

O discurso oficial se fia no progresso tibetano nas últimas sete décadas, e o governo chinês tem números relevantes para apresentar. Dados anunciados por Wang em seu discurso afirmam que a expectativa de vida da região saltou de 35,5 anos em 1951 para 70,1 hoje (na China é de 76,9) e que o PIB nesse mesmo período saltou de 130 milhões para 190 bilhões de yuans (o equivalente a US$ 29 bilhões; o PIB chinês é de US$ 14,3 trilhões).

A propaganda se apega ao passado tibetano, uma teocracia que o governo acusa de ser "uma servidão feudal reacionária e bárbara" —palavras do político chinês— que dividia seus cidadãos em classes, sendo que as mais subalternas não tinham direitos humanos.

Em redes sociais, partidários do regime fazem questão de compartilhar imagens de mutilações e castigos físicos promovidos pelos monges no começo do século passado. Quem visita o Palácio Potala, por exemplo, passeia pelos calabouços onde os presos eram torturados pelos chefes budistas.

Esse passado não é negado pelas autoridades tibetanas no exílio, e o próprio dalai-lama, líder pacifista, respondeu ao discurso de Wang. "Tantas informações distorcidas sobre o passado. É claro que ninguém argumenta que o passado no Tibete foi perfeito, ninguém diz isso. Em todo lugar, havia sistemas atrasados", disse, também na quinta-feira.

Se teve ambições separatistas no passado, há anos o dalai-lama prega o que chama de caminho do meio, uma autonomia de fato do Tibete, ainda que sob governo de Pequim. Para Alexandre Uehara, professor de relações internacionais da Universidade de São Paulo, "autonomia é uma perspectiva que não é factível". "Independência, nesse cenário, é impossível."

Segundo o professor, poderia haver questionamento no passado, mas hoje a China tem poder militar, econômico e político para impor seus interesses. "O país vem há tempos tentando evitar movimentos separatistas, independentistas. Além do Tibete, também Xinjiang, Hong Kong, e faz isso de maneira firme, porque, se abre mão e faz concessões, sinaliza fraqueza para outras partes do território."

No fim de julho, o atual líder do regime chinês, Xi Jinping, desembarcou no Tibete, na primeira visita de um chefe de Estado do país em 31 anos, para reafirmar a autoridade sobre a região.

O embaixador Castro Neves comandou o posto diplomático do Brasil em Pequim entre 2004 e 2008 e estava lá quando o governo chinês, ateu por definição, editou o decreto "Medidas sobre a gestão da reencarnação de Budas vivos do budismo tibetano".

O decreto diz que todas as reencarnações de "tulkus", ou mestres do budismo, precisam ser aprovadas pelo Partido Comunista —que ascendeu ao poder como um estado ateu e perseguindo religiões.

A questão envolve o fato de a sucessão do dalai-lama ter virado assunto de governo.

Em 1995, ele indicou uma criança de 6 anos, Gedhun Choekyi Nyima, como a reencarnação do panchen-lama, número dois da hierarquia político-religiosa do budismo tibetano. Três dias depois, o menino foi preso pelo governo chinês e nunca mais foi visto —assim, é considerado o preso político mais jovem do mundo.

Em seu lugar, o Partido Comunista indicou outro nome, Gyancain Norbu, como o 11º panchen-lama —à época com 5 anos, ele hoje tem 31.

Agora, a dúvida recai sobre o próprio líder da religião, o atual dalai-lama, que já tem 86 anos. "Esse é o grande problema que teremos na região do Tibete", diz Neves.

Não é só a integridade territorial o interesse da China pelo Tibete. Conhecida como "topo do mundo" pelas altitudes extremas, a região abriga a nascente dos principais rios da Ásia ou seus afluentes mais importantes: Indo, Ganges, Brahmaputra, Irrawaddy, Salween e Mekong. Segundo pesquisadores, eles abastecem 46% da população mundial na China, na Índia e no Sudeste Asiático.

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