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Com renúncia em desgraça, Cuomo entra para a história como assediador sexual

Assim como Harvey Weinstein foi defendido por feminista, governador de NY tem mulher à frente de sua defesa

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Lúcia Guimarães
Nova York

No verão de 1985, recém-transferida do Rio de Janeiro para Nova York, fui ao Detran local para obter minha primeira carteira de habilitação no estado. Ao emergir da estação do metrô, no distrito financeiro de Manhattan, vi um grupo de algumas dezenas ouvindo atentamente um homem de terno.

Por alguns momentos, esqueci a burocracia que me aguardava e acompanhei hipnotizada o discurso do homem que, se era protegido por guarda-costas, eles não pareciam visíveis. Seu nome era Mario Cuomo, e ele estava no primeiro de três mandatos de governador do estado de Nova York. Que orador.

Telão exibe vídeo em que o democrata Andrew Cuomo renuncia ao governo do estado, na Times Square, em Nova York - Kena Betancur/AFP

O clichê shakespeariano é frequentemente usado para os dramas de famílias políticas. No caso da família Cuomo, o teatral discurso de Andrew Cuomo nesta terça-feira (10) deixa claro que, três décadas depois de seu pai ser apelidado de “Hamlet do Rio Hudson” pela indecisão atormentada que o fez desistir da candidatura a presidente como favorito, não falta drama.

A renúncia em desgraça de Andrew Cuomo caiu como uma bomba no eixo de poder Albany-Nova York e não porque ele tivesse chance de sobreviver a um processo de impeachment na Assembleia do estado.

O comportamento do governador desde a divulgação, na semana passada, do relatório da procuradora estadual Letitia James, que compilou as acusações de 11 mulheres por assédio sexual, era de desafio e negação. Até a noite de segunda-feira (9), Rita Glavin, a advogada de Cuomo, frequentava combativa os programas de TV desfiando dúvidas sobre as histórias das acusadoras.

É comum que assediadores sexuais —e, depois do relatório, resta pouca dúvida de que Andrew Cuomo entra para a história com esse epíteto— contratem mulheres para sua defesa. O caso recente mais estranho é do monstro Harvey Weinstein, que vai morrer na prisão, apesar de ter sido defendido por Susan Estrich, uma proeminente feminista democrata que escreveu um livro seminal sobre o estupro e foi ela mesma estuprada por um estranho.

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O que faz, por exemplo, alguém como a respeitada advogada feminista Roberta Kaplan arriscar a própria reputação para assessorar, na crise gerada pelas acusações, um político tão poderoso quanto conhecido por episódios de retaliação brutal contra adversários? Depois da divulgação do relatório, Kaplan foi forçada a renunciar da liderança do grupo Time’s Up que ela ajudou a fundar para prestar assistência legal a vítimas de assédio e violência sexual.

Andrew Cuomo, assim como seu pai, flertou com a candidatura à Presidência, mas diante da aglomeração de pré-candidatos que se anunciava em 2015, optou por projetar nacionalmente sua atuação no estado e criar um legado político.

Com o país em choque pelo avanço da pandemia, em abril de 2020, o governador se tornou a figura paterna em contraponto ao agente do caos Donald Trump. Suas entrevistas coletivas diárias viraram programa obrigatório para os nova-iorquinos presos em casa, enquanto a cidade de Nova York se tornava o epicentro mundial de mortes e infecções.

Se a imprensa mostrava imagens de sacos de corpos empilhados em caminhões frigoríficos, Cuomo apresentava gráficos de progresso, apontava direções e fazia sermões sobre o desgoverno niilista de Trump. Num episódio que desafiou a ironia e poderia figurar numa paródia de políticos como "Veep", as entrevistas de Cuomo ganharam um prêmio Emmy de televisão.

Pavão que é, o governador escreveu (com óbvia ajuda de assessores pagos com nosso imposto) um prematuro e presunçoso livro de memórias sobre a gestão da pandemia em que falsificou o erro trágico criado por uma decisão que ele tomou no começo da quarentena: forçar lares de idosos a receber pacientes de Covid, o que provocou um grande número de mortes evitáveis.

Mas, ao contrário do carismático Mario Cuomo que não era santo, mas disfarçava seu pugilismo com charme, a carreira de Andrew Cuomo foi marcada, desde o começo, por comportamento agressivo e fora de normas.

Aos 19 anos, ele foi apontado —e sempre negou— como o responsável por espalhar cartazes de campanha quando o pai concorreu à prefeitura de Nova York, em 1977 com a frase “Vote for Cuomo, not the homo” (vote em Cuomo, não no gay), numa referência ao vitorioso Edward Koch, que governou a cidade por 12 anos.

A caminho de um possível quarto mandato, em 2023, Andrew Cuomo poderia reclamar para si uma lista de realizações no estado mais expressiva do que a do pai. Um veterano democrata do estado definiu o atual governador como um Mario a quem falta poesia. Pelo luto demonstrado na nada poética declaração de renúncia, Andrew Cuomo sugere que habita um gênero da prosa: a tragédia.

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