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Comunidade internacional não leva a sério alertas de genocídio, diz conselheira especial da ONU

Queniana Alice Nderitu vê riscos para índios no Brasil e diz que falhas na pandemia não se enquadram na definição do crime

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São Paulo

Em viagens ou contatos com líderes internacionais, a queniana Alice Nderitu, 53, já se acostumou a ser tratada de forma pouco amistosa.

A Conselheira Especial da ONU Para a Prevenção do Genocídio, Alice Nderitu, que critica o Brasil por suas políticas de proteção aos indígenas - Greg Ehlers - 20.fev.2018/SFU

Tudo por causa do título que carrega: Conselheira Especial da ONU Para a Prevenção do Genocídio. “Meu cargo tem a palavra genocídio, então alguns governos se incomodam muito com uma visita minha, e as implicações que isso pode ter”, afirma Nderitu, em entrevista à Folha.

No posto desde novembro de 2020, ela tem como missão assessorar o secretário-geral da ONU, o português António Guterres, sobre o tema, e é a encarregada de dar o primeiro alerta sobre situações que possam configurar genocídio.

A queniana afirma que a comunidade internacional, sobretudo no nível local, ainda não presta a devida atenção aos primeiros sinais de que “o crime dos crimes” está a caminho. “Muitos acham que até haver 1 milhão de mortos não há genocídio. Mas genocídio é algo que vai sendo construído”, diz.

Nderitu critica o governo brasileiro por não proteger as populações indígenas, mas concorda com a avaliação predominante entre especialistas em direito internacional de que não é possível enquadrar possíveis falhas no combate à pandemia como genocídio.

Em recente relatório ao Conselho de Direitos Humanos, a sra. diz que “a inação ao responder aos primeiros sinais faz com que genocídio e atrocidades aconteçam”. A comunidade internacional aprendeu com genocídios passados e está atenta a esses sinais? A comunidade internacional presta atenção aos sinais, mas depois nem sempre muita coisa é feita. Isso ocorre porque nos baseamos em instituições como o Conselho de Segurança para mover as coisas adiante, e vimos muitos casos em que ele está dividido. O escritório que eu chefio foi criado depois dos genocídios de Ruanda [1994] e de Srebrenica [1995], porque era necessário haver alguém para dar o primeiro alerta. O que eu vejo como problema não é nem tanto a comunidade internacional, mas as comunidades locais, porque pesquisas provaram que 90% das atrocidades acontecem nelas. Eu vi no Quênia o desespero de pessoas que esperavam justiça vinda de uma corte distante, mas no nível local os responsáveis andavam livremente. Voltei agora da Bósnia, e a história é a mesma: as cortes internacionais fazem um trabalho muito eficiente de responsabilizar os altos escalões, mas quanto aos de nível baixo, ninguém faz nada.

Sempre que se fala em genocídios, repete-se a frase “nunca mais”. Mas eles seguem acontecendo. Por quê? Genocídio é o crime dos crimes, o maior de todos. Governos ficam muito nervosos com esse termo. Meu cargo tem a palavra genocídio, então alguns governos se incomodam muito com uma visita minha e as implicações que isso pode ter. Mas se esquecem que a maior parte do trabalho que fazemos é de prevenção. É preciso entender que genocídio não é algo que acontece apenas com os outros, em Srebrenica, Ruanda, ou o Holocausto. As pessoas acham que genocídios são apenas eventos históricos sobre os quais podemos ler. Eu sempre dou o exemplo do Sahel [ao sul do Saara, na África], uma região afetada pela mudança climática, onde o deserto está avançando e temos conflitos de pastores. Um dia matam 15, no dia seguinte matam 20. Muitos acham que até haver 1 milhão de mortos não há genocídio. Mas genocídio é algo que vai sendo construído aos poucos.

A sra. acha que o termo deveria ser ampliado, para cobrir situações como de negligência na pandemia, por exemplo? A definição de genocídio trata do assassinato deliberado de um grande número de pessoas de uma religião ou grupo étnico particular, com o objetivo de destruição. É possível encaixar novos temas nessa definição, mas se você amplia demais, pode perder o foco. O que as cortes tentam provar é se há intenção na tentativa de destruir no todo ou em parte estes grupos. Há muita coisa que pode ser colocada nestes critérios sem expandir, e portanto diluir, o conceito. Penso que o termo já é muito forte da maneira como está.

Uma das razões pelas quais fiz essa pergunta é porque neste momento no Brasil há um debate sobre Bolsonaro ser considerado “genocida” em razão das falhas no combate à Covid. O que a sra. acha? A definição legal de genocídio está na convenção de 1948 da ONU, e reiterada no estatuto do Tribunal Penal Internacional. Nosso entendimento é que ela é muito precisa. Quando eu falo de intenção, é um elemento realmente difícil de provar, o que explica por que não temos tantos casos de genocídio reconhecidos. Temos crimes que não alcançam esse patamar e que podem constituir crimes de guerra ou contra a humanidade. E que também são igualmente sérios no direito internacional. No caso do Brasil e da Covid-19, recebemos diversas reclamações de pessoas e temos dito que o crime de genocídio é definido pela convenção de 1948. É uma barra extremamente alta, e por boa razão. Quando falamos sobre Brasil, genocídio e Covid-19, temos de nos perguntar se é possível provar que as vítimas são o resultado de uma ação deliberada para destruir um grupo étnico ou religioso.

Em seu relatório ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, no fim de junho, a sra. mostrou preocupação com a situação de grupos indígenas no Brasil. Por quê? Minha primeira preocupação é com relação ao volume de reclamações que recebemos aqui. Muitas têm relação com alegadas deficiências na proteção a essas populações. No Brasil isso se refere a vidas indígenas, questões de demarcação e déficit de instituições nacionais de proteção, especificamente a Funai. É muito importante que o Brasil lide com esses déficits na implementação de obrigações legais nacionais e internacionais. Consulta prévia [aos indígenas], por exemplo, é um requisito em razão da Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]. Tenho recebido relatos de que no Brasil isso tem sido limitado a um número pequeno de processos. E também preocupações quanto à aplicação do marco temporal em processos de demarcação. Claro que isso é perigoso. Recebi ainda manifestações sobre o impacto da extração de recursos naturais, que resultou na remoção de populações indígenas.

A sra. acha que essa situação se agravou no atual governo? Alguns desses temas são específicos do Brasil, mas há padrões gerais na região. Em termos do atual governo, sabemos que a pandemia contribuiu para que a situação de populações vulneráveis tenha ficado mais vulnerável.

Em seu relatório, a sra. menciona preocupação com a saída dos EUA do Afeganistão. Há risco de progressos feitos nos direitos de mulheres e minorias serem revertidos? Estou extremamente preocupada. A situação no Afeganistão está se deteriorando, vemos no noticiário. Estou vendo o risco que uma escalada pode ter na vida de cidadãos comuns no país, que já sofrem há muitos anos com o conflito. Há uma ameaça particular para os ganhos que mulheres e minorias tiveram. Em 8 de maio, por exemplo, vimos um ataque muito perturbador contra estudantes, a maioria garotas, numa área hazara [grupo étnico de origem persa] de Cabul, ou seja, direcionado a uma comunidade étnica. Por isso eu tenho pedido à comunidade internacional que continue apoiando o Afeganistão.

Pode haver o risco de voltar aos dias sombrios do Taleban? Sim, a menos que tenhamos um processo de paz bastante abrangente, que seja inclusivo. E que não seja apenas integrado por homens mais velhos, mas inclua também mulheres no processo decisório e pessoas mais jovens.

A sra. não menciona no seu relatório a situação dos uigures na China, embora muitos já considerem que ali esteja em curso um genocídio. Por quê? Recebi muitos relatórios sobre a deterioração da situação dos uigures em Xinjiang [região chinesa], sobre detenções arbitrárias em larga escala, desaparecimentos, vigilância. Parte da razão pela qual não mencionei a China foi porque o acesso àquela região segue sendo um desafio. O que eu posso fazer é levantar as questões quando tenho evidências. Pretendo ir à China em breve.

Há um conflito na Etiópia que está se ampliando, e com um claro componente étnico. Qual a ameaça de haver um genocídio lá em breve? O que está acontecendo lá se enquadra na moldura do que pode ser definido como genocídio. Tenho visto declarações recentes que vêm da liderança do país, referindo-se a algumas pessoas como “câncer”, ou “erva daninha”, que é linguagem usada em lugares em que houve genocídio, ou crimes de guerra.

E com relação a Mianmar, como avalia a situação dos rohingya? Os rohingya estão numa situação muito difícil. Já era difícil antes, é ainda mais agora. Para os que eram refugiados em Bangladesh e na Tailândia, é impossível voltar para casa agora, por causa das milícias e dos militares. Tanto Mianmar quanto Etiópia precisam estar no radar da comunidade internacional, e não deveria haver nenhum esforço poupado por nenhum Estado para prevenir que atrocidades sejam cometidas. O Estado etíope tem uma responsabilidade de assegurar a proteção de todos e adotar ações decisivas. Pedimos que o Conselho de Segurança esteja unido na sua resposta a esses crimes. Infelizmente, isso nem sempre tem sido o caso.


Raio-x

Alice Nderitu, 53

Nascida em Nairóbi (Quênia), fez graduação em Artes, Literatura e Filosofia, com mestrado em Conflito Armado e Estudos sobre a Paz, ambos pela Universidade de Nairóbi. Foi Comissária para Coesão Nacional e integrante da Comissão de Direitos Humanos no Quênia, além de ser membro do Instituto para Justiça e Reconciliação da África do Sul

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