Na manhã do último sábado (14), Mohammed Salem Wadhat chegou ao trabalho no Ministério das Relações Exteriores, em Cabul. Achou que havia algo estranho e sabia o quê.
"Não tinha ninguém nos escritórios. Eu soube que estava na hora de ir embora. Minha mãe tinha me dito um mês antes para eu fazer isso, porque o Taleban estava chegando", conta esse afegão de 39 anos, todos vividos sob algum tipo de guerra.
Nele há um triplo alvo desenhado. Primeiro, é um tadjique étnico, grupo rival dos pashtuns talebans. Segundo, trabalhou por anos como intérprete para jornalistas e para o destacamento da Espanha na força da Otan (aliança militar ocidental) no Afeganistão.
Terceiro, é um diplomata especializado em inteligência do governo que viria a ser derrubado no domingo (15). "Não posso voltar enquanto o Taleban estiver lá. Não acredito em anistia. Eles são selvagens", disse em uma troca de mensagens e áudios.
Sua mulher e três filhos pequenos já estavam havia algum tempo no Canadá, então ele resolveu agir rapidamente. Ao longo da semana passada, com o rolo compressor do Taleban tomando província após província, ele havia pedido a um colega um passaporte ordinário.
"Se eu tentasse sair do país com meu passaporte diplomático, poderia ter algum problema", contou ele, que trabalhou durante as eleições presidenciais de 2009 com a Folha, quando escapou por pouco com a reportagem de um atentado do mesmo Taleban.
Ele fala inglês e um espanhol fluente, adquirido em anos estudando em Madri e, depois, trabalhando como segundo secretário da embaixada afegã na cidade. Isso o levou a ser intérprete e ajudou a colocá-lo hoje em perigo.
O problema maior seria o bilhete aéreo. A partir de contatos do ministério, conseguiu um para Istambul (Turquia) a um preço quatro vezes superior aos usuais US$ 200 (pouco mais de R$ 1.000), para as pouco mais de cinco horas de voo.
Num país em que um funcionário público bem pago ganha não mais do que o dobro disso, era uma despesa proibitiva. "Não tinha como levar minha mãe ou meus irmãos e irmãs. Com o meu perfil, eu seria o primeiro a ser levado [pelo Taleban] na família, não tive dúvida", afirmou, chorando.
Sua partida foi atabalhoada, pois as multidões que resolveram fugir de Cabul já se aglomeravam quando enfim ele decolou, num dos últimos voos comerciais a deixar a capital antes da entrada do Taleban, às 8h40 do domingo (15).
Ao chegar à Turquia, sacou seu passaporte diplomático, o que o isentou da necessidade de um visto que nunca conseguiria tirar: as embaixadas em Cabul vinham sendo fechadas ou tendo os trabalhos reduzidos a um mínimo na semana passada.
"Três horas depois que eu embarquei, o presidente [Ashraf Ghani] já estava fora do país", diz ele, que está em um hotel em Istambul e não conseguiu parar para pensar nos seus próximos passos.
Ele tem preocupações mais imediatas. Na segunda (16), teve o último contato com a família, por telefone. "Eles contaram que o Taleban já estava procurando intérpretes em todos os bairros, e por isso minha mãe decidiu sair da cidade. Eu não sei onde ela e meus irmãos estão", disse.
As promessas de moderação do grupo que comandou o Afeganistão de forma violenta e obscurantista de 1996 a 2001, quando foi expulso pela invasão americana pós-11 de Setembro, não convencem Wadhat.
"Voltar seria regressar a um inferno que eu achava ter acabado. Os talebans sempre dizem que não vão fazer nada, mas não são confiáveis. Eles podem matar qualquer um na rua e ninguém assumirá responsabilidade", disse.
Vídeos que circularam pela internet mostrando talebans prendendo civis nas ruas de Cabul parecem comprovar esse temor.
Wadhat perdeu as esperanças e se vê isolado. "Nasci com as tropas soviéticas [ocupando o país], tinha 18 anos quando chegaram os talebans. Com 22 anos vi os americanos atacarem e, agora, de novo os talebans. A vida toda é um inferno", diz.
"Quando você vê aquelas pessoas caindo do céu, depois de se agarrarem a um avião americano, sabe que o povo não quer o Taleban no poder", diz, sobre as cenas da segunda-feira na capital afegã.
Contando o dinheiro, ele pretende reconstruir a vida no exterior, mas seu horizonte de eventos ainda não permite vislumbrar como.
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