Descrição de chapéu Mundo leu

Livro mostra países que desapareceram e deixaram apenas selos para contar a história

Obra de autor norueguês trata de territórios e Estados efêmeros dos séculos 19 e 20

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São Paulo

Ter território, população e governo, além de funcionar de forma independente, são os critérios clássicos do direito internacional para definir um Estado. Outros mais prosaicos incluem ter uma cerveja própria, uma companhia aérea e uma seleção de futebol.

O escritor norueguês Bjorn Berge acrescentou mais uma forma de definir um país: ter tido um selo.

O escritor norueguês Bjorn Berge, autor do livro "Lugar Nenhum" - Divulgação

Essa é a premissa de “Lugar Nenhum – Um Atlas de Países que Deixaram de Existir”, lançado em 2016 e que chega agora ao Brasil em lançamento da editora Rua do Sabão.

Arquiteto de formação, colecionador e estudioso das muitas reviravoltas que o mapa-múndi teve ao longo dos últimos séculos, Berge listou 50 territórios que em algum momento aspiraram a ser reconhecidos como Estados independentes, entre 1840 e 1975.

Como prova de que queriam ser levados a sério, todos criaram durante sua efêmera existência um símbolo de soberania: um selo. “Selos servem em primeiro lugar como prova concreta de que esses países existiram de verdade. Mas eles muitas vezes representam mentiras. Devem ser vistos como propaganda, na qual a verdade é sempre algo secundário”, afirma o autor à Folha por email.

Diversos casos citados no livro duraram poucas décadas ou mesmo um par de anos. Alguns são meras invencionices de elites deslumbradas, que queriam um país para chamar de seu. Outros tiveram consequências trágicas, redundando em guerras sangrentas.

Um exemplo é a República de Biafra, região do leste da Nigéria que declarou independência em 1967, gerando um conflito que deixou 2 milhões de mortos até ser encerrado, em 1970.

Em 1968, no primeiro aniversário do novo “país”, as autoridades de Biafra lançaram um selo com um desenho de homens trabalhando no que parece ser um laboratório. O recado que a nova república queria passar ao mundo era de respeito à ciência e ao progresso, ao contrário do obscurantismo do inimigo.

Menos sutil é a inscrição contida no selo: “ajude as crianças de Biafra”. A guerra ficou famosa pelas imagens de crianças famélicas, o que gerou uma campanha de ajuda internacional.

Nenhum território teve consequências tão duradouras para a história do século 20, no entanto, quanto o Estado Livre de Danzig, encravado na atual Polônia. Foi uma entidade soberana durante apenas 19 anos, retirada do domínio alemão após a Primeira Guerra, em 1920.

Embora tivesse 95% da população de origem germânica, Danzig passou para o controle, em termos práticos, de poloneses, embora formalmente fosse administrada pela Liga das Nações.

Um selo para marcar esse domínio, claro, não poderia faltar, e ele foi criado em 1926, com a figura de um navio, um aceno à tradição portuária do lugar. Para jogar sal na ferida alemã, tem a inscrição “Correio Polonês” e se refere ao local como “Gdansk”, seu nome em polonês, que se mantém até hoje.

Em 1939, a invasão de Adolf Hitler a Danzig, acabando com a soberania do local, foi o gatilho para a Segunda Guerra Mundial.

Mesmo exemplos mais pitorescos citados no livro contam uma história que em algum momento balançou a geopolítica de sua época.

A chamada República do Extremo Oriente, por exemplo, sobreviveu apenas entre 1920 e 1922, ocupando uma área no leste da Rússia equivalente a cinco vezes o território da Alemanha.

Foi fundada por socialistas liberais após a revolução bolchevique e aceita por um certo período pelos líderes soviéticos, para dar um verniz democrático ao novo sistema.

Numa época em que a revolução ainda se consolidava, mostrar certa tolerância era necessário para desencorajar uma possível intervenção ocidental ou de potências asiáticas, como o Japão.

Seu selo, de 1921, tem uma âncora e uma picareta entrecruzadas sobre um feixe de trigo maduro, o que parece ser uma referência mais atenuada da foice e martelo comunistas.

Embora tenha tido vida curta, até ter sido absorvida pela então nova União Soviética, a república deu uma contribuição à cultura do século 20. Alguns de seus líderes serviram de inspiração para o romance “Doutor Jivago”, que depois virou um filme clássico.

Outro território a fazer uma ponte com a literatura foi a atualmente ilha da Tasmânia, ao sul da Austrália. Entre 1803 e 1856, foi uma colônia autônoma, de natureza selvagem e assustadora, e que funcionava na prática como um grande presídio criado pelos britânicos.

A ilha serviu de cenário para um clássico da literatura juvenil, “As Viagens de Gulliver”.

“Fomos colhidos por uma forte tormenta e arrastados para o litoral da Terra de Van Diemen. Dois dos nossos homens pereceram pelo trabalho excessivo e pela ingestão de comida imprestável, e não admira que o restante esteja em maus bocados”, diz um trecho da obra de Jonathan Swift.

Seu selo, criado em 1855, mostra uma jovem rainha Vitória, com olhar um tanto assustado. “O sorriso dá lugar a um esgar de pavor, uma expressão de todo condizente com a má fama do lugar”, afirma o autor no livro.

Os selos mencionados na obra fazem parte da coleção de Berge, um hábito que lhe foi transmitido pelo pai. “Começou quando herdei o velho álbum de selos dele. Percebi que muitos foram usados em cartas de países que não existiam mais. Haviam simplesmente desaparecido, sem deixar muitos traços. Assim, minha curiosidade foi atiçada”, afirma o autor.

O livro fala de países que existiram até 1975. Segundo o norueguês, isso é proposital, embora Estados de existência efêmera continuem surgindo e desaparecendo.

“Há diversos exemplos mais recentes, como repúblicas nos Bálcãs ou da antiga União Soviética, para não mencionar o Estado Islâmico. Mas é necessário que a história tenha tempo para maturar, antes que a propaganda se descole, e o relato final se estabeleça”, afirma.

Lá Fora

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Na obra, não há nenhum exemplo brasileiro, mas isso não significa que não tenham existido, diz o escritor.

“Precisei fazer uma seleção, porque há mais de mil casos. Mas tenho conhecimento, por exemplo, das repúblicas do Acre [1899-1903] e Cunani [no atual Amapá, entre 1886 e 1891], embora os selos desta última sejam provavelmente falsificações surgidas bem depois de a entidade ter deixado de existir.”

Há exemplos, na América do Sul, no entanto, como o território de Corrientes, que existiu no local onde hoje fica a província argentina de mesmo nome, entre 1856 e 1875.

Era, como diz o autor, pouco mais do que um projeto de estancieiros que queriam demarcar sua autonomia em relação ao poder central em Buenos Aires. Para seu selo, escolheram a efígie de Ceres, deusa romana da agricultura e da fertilidade, para demarcar a vocação econômica da região, que se mantém até hoje.

Como aconteceu diversas vezes, no entanto, era apenas um projeto sem muita conexão com a realidade, afirma Berge. “Poucos países são nações no sentido de que representam uma cultura ou povo em particular. A divisão do mundo sempre foi o projeto de governantes e imperialistas, frequentemente dando pouca atenção ao que pensavam os habitantes.”

Lugar Nenhum – Um Atlas de Países que Deixaram de Existir (1840-1975)

  • Preço R$ 69,00 (240 págs.)
  • Autor Bjorn Berge
  • Editora Rua do Sabão
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