Descrição de chapéu taleban terrorismo

Com complacência ocidental, Taleban conversa com rivais enquanto violência emerge no país

Moderado para consumo externo, grupo recebe apoio velado no Ocidente e projeta governo

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São Paulo

O grupo fundamentalista islâmico Taleban começou a montagem do novo governo do Afeganistão, após ter derrubado o presidente Ashraf Ghani numa ofensiva vertiginosa que culminou com a queda de Cabul.

O movimento recebeu apoio velado no Ocidente, apesar de sinais de que o processo pode não ser tão simples como vende a facção, algo que a morte de três pessoas em protesto contra o grupo na cidade de Jalalabad e a reafirmação de que seu governo não será uma democracia demonstraram nesta quarta (18).

Afegãos protestam em Jalalabad contra remoção da bandeira do país pelo Taleban - AFP

Após falar grosso e dizer que não deveria reconhecer o Taleban como governo, o premiê britânico, Boris Johnson, mudou de tom. "Vamos julgar esse regime por suas ações, e não por suas palavras. Pela sua atitude acerca de terrorismo, crime e narcóticos, assim como pelo acesso humanitário e direitos de meninas de receber educação", disse ele nesta quarta, enquanto era criticado pela oposição.

Londres foi a primeira sócia da invasão americana de 2001, que removeu o Taleban do poder devido a seu apoio à rede Al Qaeda, que cometeu os atentados terroristas do 11 de Setembro. Cerca de 450 britânicos morreram nos 20 anos de guerra, ante mais de 160 mil afegãos.

A mudança no tom reflete as promessas do Taleban em entrevistas, inclusive a uma apresentadora da rede afegã Tolo TV. O grupo tenta se mostrar mais distante do regime aberrante que conduziu de 1996 a 2001, após ganhar a guerra civil que emergiu dos escombros da ocupação soviética de 1979-1989. Desde que ocuparam Cabul, os talebans disseram que respeitarão as mulheres, oprimidas em seu governo, a imprensa e os antigos inimigos. Tudo, e aí está o pulo do gato, sob a ótica da sharia, a lei islâmica.

Na sua primeira encarnação, o conjunto legal religioso era interpretado de forma desviante e literal, gerando massacres, punições draconianas e a supressão de direitos. Homens tinham de deixar a barba crescer, e o uso da burca —vestimenta tradicional pashtun, a etnia dos talebans— era obrigatório.

Em um movimento antes impensável, nesta quarta dois políticos importantes do período de ocupação ocidental, o ex-presidente Hamid Karzai e o ex-chanceler Abdullah Abdullah, encontraram-se com um dos principais líderes da região de Kandahar, o taleban Anas Haqqani.

Seu sobrenome diz tudo: é integrante da rede Haqqani, um dos mais sanguinários grupos terroristas que operou contra forças ocidentais e o governo afegão nessas duas décadas.

O grupo era rival do Taleban, mas acabou se unindo contra o que chamava de marionetes ocidentais em Cabul —Karzai, Abdullah e Ghani, que fugiu para Abu Dhabi, inclusos. Tal encontro é encorajador e pode subsidiar o otimismo relativo dos ocidentais. O próprio Ghani afirmou, em entrevista à rede Al Jazeera, que estaria "em consultas" para voltar ao país, já que ele e o Taleban haviam falhado em conversar.

Parece improvável, ainda mais com os relatos não confirmados de que ele, um tecnocrata sem base tribal estabelecida, deixou o país com US$ 170 milhões em malas. O Taleban já desenhou, em uma entrevista do membro de sua cúpula Waheedullah Hashimi à agência Reuters, alguns pontos de seu governo projetado.

O país terá, segundo ele, um conselho representando diversas forças, e o líder será o número 1 do Taleban, Haibatullah Akhundzada, que não é visto em público desde 2016. Sem mais elaborações, disse que a lei será a sharia. Sem surpresa aqui, afirmou: "Não será um sistema democrático de nenhum jeito, porque isso não tem base no nosso país. Não discutimos isso porque é claro: é a lei da sharia".

Na esteira da mudança de tom do Ocidente diante da tomada de poder pela facção radical, Nick Carter, chefe do Estado-Maior das Forças Armadas do Reino Unido, disse à BBC que é preciso ser "paciente e dar espaço a eles para formar um governo e mostrar suas credenciais". "Pode ser um Taleban diferente daquele que as pessoas se lembram dos anos 1990."

A posição foi reforçada por uma declaração do grupo à agência de notícias Reuters, segundo a qual todos os líderes que passaram décadas escondidos se mostrarão ao mundo. Um deles, de resto uma figura pública por morar em Doha, o número 2 do Taleban, Abdul Ghani Baradar, voltou a Kandahar na terça (17).

Na sua origem, o Taleban era um grupo subnacional ancorado na majoritária etnia pashtun, e seus ideais de conquista territorial e soberania não diferiam muito daqueles dos seus adversários —todos violentos.

Eles protegeram a Al Qaeda devido ao rígido código de hospitalidade tribal pashtun, a "melmestia", que impedia a entrega de um convidado a seus inimigos. Com o 11 de Setembro, os Estados Unidos demandaram a entrega de Osama bin Laden e amigos, o que foi recusado, e o resto é história.

Até ali, o Ocidente tolerava o regime medieval que o grupo implementou e até o cortejava, dado que houve relativa estabilidade construída sobre o terror da população. É possível que isso se repita? Os tempos são outros, a exposição dos crimes talebans criou um novo demônio para os ocidentais, e direitos humanos são inegociáveis na arena pública. Nos bastidores, contudo, a história muda, e o balé de falas que se complementam do Taleban e de gente como Boris pode indicar alguma acomodação.

O que não significa moderação, é evidente. Apesar de toda a fanfarra de que agora será diferente, abundam relatos de práticas tipicamente talebans nas cidades recém-ocupadas pelo grupo.

Um dos mais simbólicos emergiu nesta quarta, com a derrubada de uma estátua do líder hazara Abdul Ali Mazari em Bamiyan, cidade que ficou tristemente famosa quando o Taleban, em 2000, explodiu dois Budas gigantescos esculpidos em pedra. Os hazaras, xiitas em oposição ao sunismo purista dos talebans, são uma das minorias que mais sofreram durante o primeiro governo taleban.

A Folha ouviu, nos últimos dias, relatos de que os membros do grupo em Cabul estão em pânico e sem condições de sair da capital. A cidade, aliás, registra diariamente prisões arbitrárias nas ruas, conforme vídeos que circulam em redes sociais. Esse tipo de exposição não havia em 2001, quando nem água corrente havia em Cabul, o que deve dificultar a vida do Taleban na era do Twitter e do TikTok.

Mesmo assim, ainda há muita gente com medo. No último contato com a reportagem da Folha, o jornalista Ahmed Ali afirmou que ele e sua família continuavam escondidos perto da capital e que há mensagens incessantes no celular avisando sobre batidas atrás de pessoas identificadas com os ocidentais, o que torna a patrulha digital incerta como fator moderador do Taleban.

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Seja como for, tal comedimento para consumo externo é mais facilmente exercido na capital, onde ainda há jornalistas ocidentais e afegãos ativos. Segundo a Reuters ouviu do grupo, a ordem foi de não celebrar a vitória de domingo no estilo tradicional —tiros ao alto, saques e eventuais assassinatos de transeuntes.

Basta, no entanto, ir a 150 km da capital, em Jalalabad, a grande cidade que liga Cabul à fronteira paquistanesa. Nesta quarta, houve confusão quando talebans impediram moradores de colocar a bandeira nacional numa praça da cidade.

Capital da província de Nangarhar, a cidade sempre foi ponto refratário ao Taleban, tendo caído nas mãos das forças da antiga Aliança do Norte antes do que Cabul em 2001. Ao menos três pessoas foram mortas, segundo relatos da imprensa paquistanesa.

Afegão carrega bandeira do país em protesto contra o Taleban em Jalalabad - Pajhwok Afghan News/via Reuters

O incidente pode não sinalizar uma guerra civil, até porque o poderio do Taleban por ora parece consolidado, mas mostra que a versão "light" apresentada para as TVs ocidentais cairia bem para os EUA e aliados. Afinal de contas, o presidente americano, Joe Biden, está sob fogo devido à saída atabalhoada do país e à falta de informações acerca da fragilidade do governo que caiu.

Já para os afegãos, a versão do Taleban poderá ser outra.

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