Descrição de chapéu The New York Times

Na linha de frente que combate o Taleban no Afeganistão, não há boas opções

Governo tenta desesperadamente defender Kandahar do ataque dos insurgentes

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The New York Times

Quando começaram os primeiros tiros de fuzis, uma unidade da polícia testou sua metralhadora pesada. O atirador apontou o cano para as proximidades da linha de frente do Taleban e disparou, com um ruído ensurdecedor. Onde as balas caíram ninguém sabe.

O sol acabava de descer atrás do horizonte, e o chamado para a oração começou a ecoar pela cidade de Kandahar. A unidade policial, incrustada na borda de um bairro formado principalmente por casas de barro e lojas baixas, se preparou para mais uma longa noite.

À meia-noite, segundo o comandante de polícia de 29 anos, é quando "o jogo começa para valer".

Veículo atingido por bala em Kandahar, Afeganistão
Veículo atingido por bala em Kandahar, no Afeganistão - Jim Huylebroek - 4.ago.21/The New York Times

Desde que começou a retirada dos Estados Unidos, em maio, o Taleban capturou mais da metade dos cerca de 400 distritos do Afeganistão. E no último mês, Kandahar, a segunda cidade, está sob o sítio dos insurgentes no que pode ser a luta mais importante para o futuro do país.

As forças de segurança tentaram contê-los enquanto outras capitais provinciais caíam, incluindo Kunduz, a maior cidade já capturada pelo Taleban. Só nos últimos quatro dias, os insurgentes capturaram seis capitais, abrindo um novo capítulo sangrento na guerra e revelando melhor como o governo tem pouco controle do país sem o apoio dos militares americanos.

Os insurgentes estão desesperados para capturar Kandahar, pois o Taleban se enraizou primeiro em seus distritos vizinhos nos anos 1990, antes de capturar a própria cidade e anunciar seu emirado. E o governo está desesperado para defender Kandahar, um símbolo do alcance do Estado e um polo econômico essencial para o comércio com o Paquistão através de seus postos de controle, pontes e rodovias.

Em uma noite quente no início deste mês, as bandeiras afegã e do Taleban tremulavam sobre um morro próximo, um santuário budista transformado em islâmico escavado em sua encosta —a marca mais nítida da linha de frente ocidental de Kandahar.

A leste da montanha, uma mistura de Exército afegão, comandos e unidades especiais de polícia tentavam a todo custo dominar a cidade, apesar de estarem exaustos, desnutridos e mal equipados.

A linha de frente do governo começa no bairro de Sarposa, onde o Taleban tenta tomar uma prisão que o grupo também atacou em 2008, em uma ação que libertou cerca de 1.200 presos.

Ali perto, o ruído de tiros e explosões é o sinal para Raz Mohammed, 23, iniciar sua rotina noturna de levar os quatro filhos para o porão. Ele liga um velho ventilador, tentando abafar os sons da guerra o suficiente para que consigam dormir por algumas horas.

O aparelho enferrujado é uma defesa precária contra os tiroteios terrivelmente fortes que se arrastam noite após noite em Kandahar. A luta é especialmente acirrada em torno de Sarposa. Lá, o Taleban se firmou, usando as casas da população e qualquer terreno que consiga ocupar.

No começo, os filhos e filhas de Mohammed gritavam de terror quando o tiroteio começava, mas agora a violência se tornou rotineira. Muitos de seus vizinhos já fugiram para partes mais seguras da cidade, mas até agora Mohammed preferiu ficar na casa que a família possui há 60 anos.

Ele não tem outro lugar para onde ir.

"Se eu sair, terei de viver na rua", disse Mohammed, cercado pelos filhos, à sombra de uma loja de sua propriedade.

Raz Mohammed e seus filhos no porão de casa, de onde tentam se proteger das explosões em Kandahar
Raz Mohammed e seus filhos no porão de casa, de onde tentam se proteger das explosões em Kandahar - Jim Huylebroek - 4.ago.21/The New York Times


Mas com os ataques de foguetes e tiroteios todas as noites, ele sabe que sua família será obrigada a partir se o bombardeio ficar mais próximo. Eles poderão passar algumas noites, no máximo, na casa já lotada de seus parentes antes de irem para um dos cerca de meia dúzia de campos de refugiados que surgiram ao redor da cidade, desolados, sem água e comida suficientes e extremamente quentes.

Essa é a dura opção para milhares de famílias em uma das metrópoles mais importantes do Afeganistão, e também para muitas espalhadas por amplas áreas do país. Kandahar é uma cidade cujo significado histórico e estratégico a transformou em um ponto focal para o Taleban e para as campanhas militares do governo.

"Eu só quero que esta incerteza acabe", disse Mohammed, na manhã depois de mais uma longa batalha a poucas centenas de metros de sua casa.

Sulaiman Shah morava a alguns quarteirões de Mohammed, em outro bairro que foi cercado pelo recente avanço do Taleban. No mês passado, o jovem de 20 anos, baixo e forte, tomou a decisão que Mohammed até agora evitou.

Quando a luta chegou perto demais, ele fugiu de casa com sua mulher e o filho de alguns meses, encontrando refúgio em um campo perto do aeroporto no lado leste de Kandahar, longe das linhas de frente. Sua família agora vive em uma tenda feita com uma lona e cachecóis amarrados.

Nenhuma ajuda internacional alcançou os campos de refugiados da cidade até agora. Voluntários apoiados por um deputado local descascam batatas cobertas de moscas que cozinham e distribuem durante o dia. Os terrenos são uma confusão de tendas improvisadas, famílias esparramadas pelo chão e um prédio do governo vazio que cheira a dejetos humanos.

"Se eles querem nos ajudar, deveriam parar de lutar em nosso bairro para podermos voltar para casa", disse Shah em uma súplica ao governo, ao lado dos poucos pertences que ele conseguiu levar.


De volta a Sarposa, Atta Mohammed, 63, um homem surrado mas decidido, pai de 12 filhos, até agora preferiu ficar em sua casa. Ele tentou parar a guerra em seus próprios termos, pelo menos negociando com as forças afegãs estacionadas atrás de sua casa.

Preso entre as linhas do governo e do Taleban na borda de seu bairro, Atta Mohammed, que não é parente de Raz Mohammed, fez um pedido simples para as tropas: parem de atirar.

"Não nos importa quem está no governo", disse Mohammed em um beco sombreado perto de sua casa de 46 anos. "Eu apenas quero estar de um lado ou de outro."

As lojas de Mohammed foram destruídas pouco depois do início das lutas, no mês passado. E, como muitos no bairro que se recusaram a ir embora, ele teme que ele ou um de seus filhos se torne uma vítima do combate, como várias centenas de civis que já foram mortos ou feridos, segundo a ONU.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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