Reino Unido se incomoda com política solitária de Biden para Afeganistão

Autoridades britânicas mostraram-se desapontadas com postura do presidente dos EUA

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Mark Landler
Londres | The New York Times

No Reino Unido, a saída caótica do Afeganistão vem atraindo comparações não com helicópteros deixando Saigon, mas com uma derrota anterior: a crise de 1956 no canal de Suez, na qual a Grã-Bretanha humilhada foi forçada a se retirar do Egito depois de não ter conseguido afastar o líder nacionalista Gamal Abdel Nasser (1918-1970).

O problema é que o Reino Unido pouco influiu sobre o timing ou a tática da retirada mais recente, apesar de ter sofrido o segundo maior número de baixas do lado ocidental na guerra do Afeganistão, atrás apenas dos Estados Unidos.

Esse fato deixou autoridades britânicas constrangidas e amarguradas com o presidente Joe Biden, 78. Algumas dizem que ele se comportou mais como seu predecessor, Donald Trump, 75, do que como um aliado que prometeu uma nova era de parceria americana.

O presidente dos EUA, Joe Biden, durante pronunciamento sobre a retirada americana do Afeganistão, na Casa Branca
O presidente dos EUA, Joe Biden, durante pronunciamento sobre a retirada americana do Afeganistão, na Casa Branca - Brendan Smialowski - 16.ago.21/AFP

“Ele não apenas humilhou os aliados afegãos dos EUA”, afirmou Rory Stewart, 48, ex-ministro do gabinete britânico com extensa experiência no Afeganistão. “Biden ridicularizou seus aliados ocidentais ao deixar clara a impotência deles."

Agora, o primeiro-ministro Boris Johnson, 57, que vem se esforçando para cultivar um relacionamento positivo com Biden, se vê obrigado a lidar com as consequências de uma retirada na qual ele próprio não teve voz —e que levou à reconquista do país pelo Taleban em velocidade relâmpago.

Nesta quarta, Boris discursou a um Parlamento convocado a sair do recesso de verão para informá-lo dos planos emergenciais para evacuar milhares de cidadãos britânicos do Afeganistão e oferecer refúgio a locais que ajudaram militares e diplomatas durante as duas décadas de engajamento britânico no país.

Boris também vai anunciar um plano para receber até 5.000 refugiados, priorizando mulheres fugitivas da perseguição do Taleban. O plano também prevê a meta de receber 20 mil imigrantes no longo prazo.

O tom de desafio do discurso proferido por Biden na Casa Branca na segunda-feira (16) deixou consternadas muitas autoridades em Londres, que notaram que o democrata ignorou a contribuição feita pelo Reino Unido, a segunda maior fornecedora de tropas para a guerra e que perdeu 454 soldados no país. (Os EUA sofreram cinco vezes mais baixas e enviaram dez vezes mais tropas). Alguns disseram que o discurso levantou dúvidas mais amplas sobre a confiabilidade dos EUA como aliado.

“Espero que ‘América em primeiro lugar’ não tenha se convertido em ‘América sozinha’”, comentou Tom Tugenhadt, 48, deputado conservador que preside o comitê de relações exteriores. Ele disse que a experiência deve levar o Reino Unido a rever os termos de seu relacionamento com os EUA em operações de segurança futuras.

“A lição a ser tirada pelo Reino Unido é que a interdependência não deve se converter em dependência excessiva”, disse Tugenhadt, que serviu no Iraque e no Afeganistão. “Somos parceiros melhores quando temos opções e podemos ajudar a moldar as decisões.”

O secretário de Defesa britânico, Ben Wallace, 51, e alguns generais britânicos não pouparam críticas à política americana, desde os gestos de aproximação de Trump com o Taleban ao anúncio inicial de uma retirada americana, feito em fevereiro de 2020.

Wallace disse que o Reino Unido sondou outros membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) sobre a possibilidade de organizar uma força de estabilização no Afeganistão após a saída dos Estados Unidos. Essa ideia não deu em nada, e, mesmo que houvesse avançado, especialistas em segurança opinaram que, dada a potência aérea maciça que seria necessária, uma força da Otan sem participação americana jamais teria sido suficiente para conter a insurgência do Taleban.

“Sou soldado”, disse Wallace, que foi capitão do Exército britânico, em entrevista emotiva concedida a uma rádio na segunda-feira na qual pareceu estar quase em lágrimas diante da perspectiva de alguns aliados britânicos não conseguirem sair da capital afegã, Cabul. “É triste o Ocidente ter feito o que fez.”

Mas há poucos sinais de que seu chefe, Boris, compartilhe seu engajamento com o projeto afegão. Em declarações recentes, o premiê ecoou o sentimento de Biden de que esse engajamento não daria em nada, dizendo: “Sabíamos havia muito tempo que era esse o caminho que as coisas iam seguir”. No verão passado, Boris descreveu o Afeganistão como “a crônica de um acontecimento anunciado”.

O líder britânico vem evitando tecer qualquer crítica direta a Biden. Um funcionário sênior de Downing Street disse na terça-feira que os EUA continuam a ser um aliado vital, por mais difíceis que sejam as circunstâncias no Afeganistão. De acordo com comunicado da Casa Branca, os dois conversaram ao telefone na terça-feira sobre a necessidade de trabalharem “lado a lado” para evacuar seu pessoal do país.

Boris tem bons motivos para evitar uma ruptura com Biden. O premiê vem fazendo lobby junto ao democrata sobre questões como a pandemia de coronavírus e a mudança climática. Ele precisa que os EUA exerçam um papel importante na conferência das Nações Unidas sobre a crise do clima que ele presidirá em Glasgow, na Escócia, em novembro.

Como é o caso com Biden nos Estados Unidos, não está claro se Boris pagará um custo político por abandonar o Afeganistão –exceto, é claro, se o país se converter em sementeira de ataques terroristas futuros no Ocidente.

O Reino Unido retirou suas últimas tropas de combate do Afeganistão em 2014 e desde então mantém no país apenas uma presença pequena de segurança. O Afeganistão, como questão de interesse nacional, desapareceu das manchetes britânicas tanto quanto das dos Estados Unidos.

“Boris Johnson e Joe Biden vão procurar estimar se esta reação de consternação será algo passageiro e se apenas um punhado de veteranos militares e especialistas no Afeganistão vão se importar com isso”, disse Stewart, que montou uma fundação no Afeganistão que restaurou edifícios, criou uma clínica e opera um centro de artes e ofícios tradicionais.

Como destacam historiadores, a Grã-Bretanha já abandonou o Afeganistão no passado após guerras malsucedidas no século 19, um período do aventureirismo colonial que ficou conhecido como “O Grande Jogo”. Em 1963, o primeiro-ministro britânico Harold McMillan (1894-1986), então prestes a deixar o cargo, declarou, em frase que ficaria famosa, que a primeira regra da política deveria ser “jamais invadir o Afeganistão”.

Mas este episódio destaca o enfraquecimento da influência britânica no palco mundial.

Após uma cúpula recente do G7 na Cornualha, Boris estreou uma nova política externa pós-brexit que batizou de “Grã-Bretanha Global”. Mas o fato de Biden não ter consultado o Reino Unido sobre o Afeganistão, ocorrendo na esteira do unilateralismo de Trump, sugere que seu aliado-chave não está levando o Reino Unido tão a sério assim.

“Os EUA têm interesses totalmente diferentes e um sistema político não confiável, pelo menos no tocante à política externa”, comentou Jeremy Shapiro, diretor de pesquisas do Conselho Europeu de Relações Exteriores. “É quando ocorre uma tragédia enorme ou um erro de grandes proporções que essas coisas vêm à tona.”

Kim Darroch, 67, que foi embaixador britânico em Washington durante a Presidência de Trump, afirmou que os britânicos não devem se preocupar em demasia com as possíveis implicações da política de Biden para o Afeganistão, porque ela provavelmente não será reproduzida em relação a outras questões, como a mudança climática, nas quais é provável que o presidente americano seja mais cooperativo.

“Biden implementou a política de Trump, basicamente”, disse Darroch. “Mas essa é mais ou menos a única área em que o fez. Em todas as outras áreas ele jogou a política de Trump por terra.”

Tradução de Clara Allain   

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