No Reino Unido, a saída caótica do Afeganistão vem atraindo comparações não com helicópteros deixando Saigon, mas com uma derrota anterior: a crise de 1956 no canal de Suez, na qual a Grã-Bretanha humilhada foi forçada a se retirar do Egito depois de não ter conseguido afastar o líder nacionalista Gamal Abdel Nasser (1918-1970).
O problema é que o Reino Unido pouco influiu sobre o timing ou a tática da retirada mais recente, apesar de ter sofrido o segundo maior número de baixas do lado ocidental na guerra do Afeganistão, atrás apenas dos Estados Unidos.
Esse fato deixou autoridades britânicas constrangidas e amarguradas com o presidente Joe Biden, 78. Algumas dizem que ele se comportou mais como seu predecessor, Donald Trump, 75, do que como um aliado que prometeu uma nova era de parceria americana.
“Ele não apenas humilhou os aliados afegãos dos EUA”, afirmou Rory Stewart, 48, ex-ministro do gabinete britânico com extensa experiência no Afeganistão. “Biden ridicularizou seus aliados ocidentais ao deixar clara a impotência deles."
Agora, o primeiro-ministro Boris Johnson, 57, que vem se esforçando para cultivar um relacionamento positivo com Biden, se vê obrigado a lidar com as consequências de uma retirada na qual ele próprio não teve voz —e que levou à reconquista do país pelo Taleban em velocidade relâmpago.
Nesta quarta, Boris discursou a um Parlamento convocado a sair do recesso de verão para informá-lo dos planos emergenciais para evacuar milhares de cidadãos britânicos do Afeganistão e oferecer refúgio a locais que ajudaram militares e diplomatas durante as duas décadas de engajamento britânico no país.
Boris também vai anunciar um plano para receber até 5.000 refugiados, priorizando mulheres fugitivas da perseguição do Taleban. O plano também prevê a meta de receber 20 mil imigrantes no longo prazo.
O tom de desafio do discurso proferido por Biden na Casa Branca na segunda-feira (16) deixou consternadas muitas autoridades em Londres, que notaram que o democrata ignorou a contribuição feita pelo Reino Unido, a segunda maior fornecedora de tropas para a guerra e que perdeu 454 soldados no país. (Os EUA sofreram cinco vezes mais baixas e enviaram dez vezes mais tropas). Alguns disseram que o discurso levantou dúvidas mais amplas sobre a confiabilidade dos EUA como aliado.
“Espero que ‘América em primeiro lugar’ não tenha se convertido em ‘América sozinha’”, comentou Tom Tugenhadt, 48, deputado conservador que preside o comitê de relações exteriores. Ele disse que a experiência deve levar o Reino Unido a rever os termos de seu relacionamento com os EUA em operações de segurança futuras.
“A lição a ser tirada pelo Reino Unido é que a interdependência não deve se converter em dependência excessiva”, disse Tugenhadt, que serviu no Iraque e no Afeganistão. “Somos parceiros melhores quando temos opções e podemos ajudar a moldar as decisões.”
O secretário de Defesa britânico, Ben Wallace, 51, e alguns generais britânicos não pouparam críticas à política americana, desde os gestos de aproximação de Trump com o Taleban ao anúncio inicial de uma retirada americana, feito em fevereiro de 2020.
Wallace disse que o Reino Unido sondou outros membros da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) sobre a possibilidade de organizar uma força de estabilização no Afeganistão após a saída dos Estados Unidos. Essa ideia não deu em nada, e, mesmo que houvesse avançado, especialistas em segurança opinaram que, dada a potência aérea maciça que seria necessária, uma força da Otan sem participação americana jamais teria sido suficiente para conter a insurgência do Taleban.
“Sou soldado”, disse Wallace, que foi capitão do Exército britânico, em entrevista emotiva concedida a uma rádio na segunda-feira na qual pareceu estar quase em lágrimas diante da perspectiva de alguns aliados britânicos não conseguirem sair da capital afegã, Cabul. “É triste o Ocidente ter feito o que fez.”
Mas há poucos sinais de que seu chefe, Boris, compartilhe seu engajamento com o projeto afegão. Em declarações recentes, o premiê ecoou o sentimento de Biden de que esse engajamento não daria em nada, dizendo: “Sabíamos havia muito tempo que era esse o caminho que as coisas iam seguir”. No verão passado, Boris descreveu o Afeganistão como “a crônica de um acontecimento anunciado”.
O líder britânico vem evitando tecer qualquer crítica direta a Biden. Um funcionário sênior de Downing Street disse na terça-feira que os EUA continuam a ser um aliado vital, por mais difíceis que sejam as circunstâncias no Afeganistão. De acordo com comunicado da Casa Branca, os dois conversaram ao telefone na terça-feira sobre a necessidade de trabalharem “lado a lado” para evacuar seu pessoal do país.
Boris tem bons motivos para evitar uma ruptura com Biden. O premiê vem fazendo lobby junto ao democrata sobre questões como a pandemia de coronavírus e a mudança climática. Ele precisa que os EUA exerçam um papel importante na conferência das Nações Unidas sobre a crise do clima que ele presidirá em Glasgow, na Escócia, em novembro.
Como é o caso com Biden nos Estados Unidos, não está claro se Boris pagará um custo político por abandonar o Afeganistão –exceto, é claro, se o país se converter em sementeira de ataques terroristas futuros no Ocidente.
O Reino Unido retirou suas últimas tropas de combate do Afeganistão em 2014 e desde então mantém no país apenas uma presença pequena de segurança. O Afeganistão, como questão de interesse nacional, desapareceu das manchetes britânicas tanto quanto das dos Estados Unidos.
“Boris Johnson e Joe Biden vão procurar estimar se esta reação de consternação será algo passageiro e se apenas um punhado de veteranos militares e especialistas no Afeganistão vão se importar com isso”, disse Stewart, que montou uma fundação no Afeganistão que restaurou edifícios, criou uma clínica e opera um centro de artes e ofícios tradicionais.
Como destacam historiadores, a Grã-Bretanha já abandonou o Afeganistão no passado após guerras malsucedidas no século 19, um período do aventureirismo colonial que ficou conhecido como “O Grande Jogo”. Em 1963, o primeiro-ministro britânico Harold McMillan (1894-1986), então prestes a deixar o cargo, declarou, em frase que ficaria famosa, que a primeira regra da política deveria ser “jamais invadir o Afeganistão”.
Mas este episódio destaca o enfraquecimento da influência britânica no palco mundial.
Após uma cúpula recente do G7 na Cornualha, Boris estreou uma nova política externa pós-brexit que batizou de “Grã-Bretanha Global”. Mas o fato de Biden não ter consultado o Reino Unido sobre o Afeganistão, ocorrendo na esteira do unilateralismo de Trump, sugere que seu aliado-chave não está levando o Reino Unido tão a sério assim.
“Os EUA têm interesses totalmente diferentes e um sistema político não confiável, pelo menos no tocante à política externa”, comentou Jeremy Shapiro, diretor de pesquisas do Conselho Europeu de Relações Exteriores. “É quando ocorre uma tragédia enorme ou um erro de grandes proporções que essas coisas vêm à tona.”
Kim Darroch, 67, que foi embaixador britânico em Washington durante a Presidência de Trump, afirmou que os britânicos não devem se preocupar em demasia com as possíveis implicações da política de Biden para o Afeganistão, porque ela provavelmente não será reproduzida em relação a outras questões, como a mudança climática, nas quais é provável que o presidente americano seja mais cooperativo.
“Biden implementou a política de Trump, basicamente”, disse Darroch. “Mas essa é mais ou menos a única área em que o fez. Em todas as outras áreas ele jogou a política de Trump por terra.”
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