Descrição de chapéu The New York Times

Série dirigida por Spike Lee homenageia vítimas do 11 de Setembro e da Covid

'New York Epicenters: 9/11-2021½' é um tributo alternadamente triste e irreverente a Nova York

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Reggie Ugwu
The New York Times

Spike Lee, como sua cidade, exala uma espécie de resiliência irreverente. Sua expressão facial habitual parece estar dizendo “veja se consegue me convencer”.

A impressão que se tem em Nova York às vezes é de que há provações que nos aguardam em cada esquina. Aqui o sofrimento é uma espécie de direito de nascença das pessoas –quer sejam as agruras do cotidiano (a abundância de maus cheiros vindos do lixo no verão) ou as catastróficas (os ataques de 11 de Setembro, a primeira primavera da pandemia de Covid-19).

Em sua nova série documental de oito horas de duração, “New York Epicenters: 9/11-2021½”, o diretor registra o espírito incansável de Nova York. A primeira de quatro partes estreou no último dia 22 na HBO (ainda indisponível para a América Latina).

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Spike Lee perto de sua casa, em Nova York - Andre D. Wagner - 14.mai.21/New York Times

Parecendo cercados por um brilho azul tênue diante de um pano de fundo escuro, dezenas de nova-iorquinos dão seus testemunhos em entrevistas que narram cada fase dos dois desastres. As duas primeiras partes enfocam a pandemia, e as duas últimas tratam dos ataques ao World Trade Center.

Muitos dos rostos são bem conhecidos –o senador Chuck Schumer, o prefeito Bill de Blasio e a atriz Rosie Perez—, porém a maior parte da história é relatada pelo ponto de vista daqueles que foram menos vistos mas que mais viram: profissionais de saúde, bombeiros, ativistas e sobreviventes.

Eles formam uma espécie de coro, com Lee, no papel de regente, desacelerando ou acelerando as coisas enquanto as memórias individuais se harmonizam ou divergem. Conversei com o diretor recentemente por videochamada sobre a criação da série, sobre seu próprio sentimento de luto e o porquê de ele ainda questionar o que causou a queda dos edifícios do World Trade Center.

Qual foi o germe inicial da ideia desta série? Por que quis criar um documentário amarrando a experiência da pandemia em Nova York e o 11 de Setembro? Bem, uma coisa que tende a ser passada por cima é que sou documentarista também. Mas, para mim, ainda é uma narrativa. Eu realmente não segmento as coisas, não as enquadro em duas categorias distintas. E sou nova-iorquino. Simplesmente fez sentido. Não gosto de usar o termo “aniversário”, mas, com a aproximação dos 20 anos desde o 11 de Setembro e com as pessoas frequentemente dizendo que Nova York é o epicentro da Covid, foi natural.

O que viu como conexão entre os dois acontecimentos? Acho que estamos homenageando as pessoas que perderam a vida por doenças relacionadas ao 11 de Setembro e também os mais de 660 mil americanos que já não estão aqui devido à Covid. Mais americanos morreram de Covid do que na Segunda Guerra, na Guerra da Coreia, nas guerras de Vietnã, Iraque e, ironicamente, Afeganistão. Somadas.

Você disse que entrevistou mais de 200 pessoas para a série, entre líderes políticos, atores, profissionais de saúde e ativistas. Que pessoas procurou? Tivemos ótimos pesquisadores —Judy Aley liderou uma equipe fenomenal. Tenho as pessoas que conheço e pessoas sobre as quais leio no New York Times. Quisemos apenas entrevistar um grupo o mais completo possível, um caleidoscópio de testemunhas. É assim que os descrevo: são testemunhas. Só quem disse “não” foi o NYPD [Departamento de Polícia de Nova York]. O NYPD não saiu bem nesta fita. E aquelas imagens [de policiais agredindo manifestantes do Black Lives Matter em 2020] não mentem. Os policiais estavam quebrando cabeças.

Eles não quiseram falar com você? Não conseguiram se defender? Eles assistiram a “Faça a Coisa Certa”.

Qual dos temas te comoveu mais? Para mim, o mais comovente, não incluindo as imagens de arquivo, são as entrevistas com pessoas que perderam entes queridos. São entrevistas difíceis de conduzir, porque essas pessoas sabem por que estão ali. E sabem que sou obrigado a fazer perguntas difíceis. As pessoas se abrem completamente, expõem a alma. Foi muito, muito emocionante. Não consigo entender o que elas estão passando. É difícil fazer perguntas quando você sabe que as pessoas vão desabar. Não é fácil, não é divertido, mas sou obrigado a fazer essas perguntas.

Chamou a minha atenção o jeito como você está presente em muitos desses momentos. Ouvimos você contribuindo com uma palavra de apoio. O que passa por sua cabeça quando está diante de uma pessoa que está se pondo nu dessa maneira? Procuro não interrompê-las. Não consigo o tempo todo, mas faz parte do meu trabalho. Queremos que as pessoas fiquem informadas. E uma coisa é muito importante: acho que elas confiam em mim —as pessoas, não o NYPD. Essas pessoas confiam que o documentário não será algo que as explora, confiam que será o melhor olhar possível. Não quero trair a confiança delas.

Ouvimos falar em 600 mil mortos pela Covid ou em mais de 3.000 no 11 de Setembro. Esses são apenas números, são frios. Mas esses números são seres humanos. Pessoas que são amadas por seus cônjuges, filhos, amigos, familiares. Quem são essas pessoas? Quem são os afegãos que estavam no trem de pouso do avião e caíram? É preciso incluir esse elemento humano, sabe? Não pode ser apenas um número.

A outra coisa que isso nos mostra, de um jeito meio cruel, é que a vida continua. Se você já viu “Crooklyn” [“Uma Família de Pernas pro Ar''], deve saber que perdi minha mãe quando estava no segundo ano da faculdade. Ela nunca chegou a assistir a nenhum dos meus trabalhos. Ela está comigo o tempo todo, mas a vida continua, sabe? No caso dessas entrevistas, sinto que elas também entendem isso. Não há como substituir o amor de um ente querido, você vai sentir saudades da pessoa para sempre, mas a vida continua. Acho isso uma coisa muito importante que este filme mostra.

Há muita divulgação despreocupada de seus favoritos: os Yankees, os Knicks, Morehouse, a NYU. Não foi consciente. É simplesmente quem eu sou. Mesmo no caso de “Faça a Coisa Certa”, um filme muito sério, havia humor. Isso é algo que faz parte de quem sou. Acho que sou bem-sucedido com meus documentários porque não quero que as pessoas sintam que estão sendo entrevistadas, estamos apenas batendo papo. As câmeras estão ali, por acaso, mas estamos apenas jogando conversa fora, sabe?

Mesmo depois da edição, ainda resta uma irreverência divertida às vezes. Você insere trechinhos de “A Few Good Men” e o videoclipe de “It Wasn’t Me”, de Shaggy. Esse estilo é diferente do que você fez com “When the Levees Broke”, sobre o furacão Katrina, que foi muito mais sombrio. Sua abordagem evoluiu desde então? A diferença é esta: apenas visitei Nova Orleans. Não cresci ali. Nova York é a minha cidade. Está no meu DNA de um jeito que Nova Orleans não está.

O que você aprendeu com suas pesquisas? Eu não sabia do êxodo marítimo [depois dos ataques ao World Trade Center]. Mais de meio milhão de nova-iorquinos saiu da ilha [de barco]. Mais pessoas do que em Dunquerque [norte da França].

O último episódio da série reserva muito tempo ao questionamento sobre como e por que as torres caíram. Você entrevista membros do grupo conspiratório Arquitetos e Engenheiros pela Verdade sobre o 11/9. Por que quis incluir o ponto de vista deles? Porque ainda tenho dúvidas. E espero que talvez o legado deste documentário seja que o Congresso promova uma audiência sobre o 11 de Setembro.

Você não acredita nas explicações oficiais? O calor que é necessário para provocar o derretimento de aço não foi alcançado. E há a justaposição do modo como o Edifício 7 caiu quando você o contrapõe a outros desabamentos de prédios que foram demolidos. É como se estivesse assistindo à mesma coisa. Mas as pessoas vão chegar às suas próprias conclusões. Minha abordagem consiste em colocar essa informação no filme e deixar as pessoas decidirem por si mesmas. Respeito a inteligência da plateia.

Tradução de Clara Allain

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