Vacinas contra Covid produzidas na África estão sendo exportadas para a Europa

Países africanos têm baixo índice de imunização e vivem temor com variante delta

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rebecca Robbins Benjamin Mueller
Nova York | The New York Times

A vacina contra a Covid-19 da Johnson & Johnson estava prevista para ser uma das armas mais importantes da África na luta contra o coronavírus. A empresa americana concordou em vender doses suficientes de seu fármaco, de baixo custo e dose única, para eventualmente imunizar um terço da população do continente. E ela seria produzida em parte por um fabricante na África do Sul, suscitando a esperança de que as doses fossem em pouco tempo destinadas a africanos.

Não é o que vem acontecendo. A África do Sul ainda aguarda receber a grande maioria dos 31 milhões de doses que encomendou. Só cerca de 2 milhões de doses do imunizante Johnson & Johnson foram aplicados no país até agora. Essa é uma razão crucial pela qual menos de 7% dos sul-africanos estão plenamente vacinados –e porque o país vem sendo devastado pela variante delta do vírus.

Sul-africano recebe dose da vacina contra a Covid-19 em Centurion
Sul-africano recebe dose da vacina contra a Covid-19 em Centurion - Luca Sola - 13.ago.21/AFP

Ao mesmo tempo, a Johnson & Johnson vem exportando milhões de doses envasadas e embaladas na África do Sul para distribuição na Europa. A informação é da própria empresa e da fabricante sul-africana, Aspen Pharmacare, além de documentos do governo local aos quais o New York Times teve acesso.

Glenda Gray, cientista sul-africana que ajudou a liderar o ensaio clínico da J&J no país, disse que as empresas precisam priorizar o envio de doses aos países mais pobres envolvidos na produção.

“É como se um país produzisse alimentos para o mundo e visse sua produção ser enviada a destinos ricos em recursos, enquanto seus próprios cidadãos passam fome”, explica.

Muitos países ocidentais vêm conservando para eles próprias doses fabricadas em seu território. Isso não foi possível na África do Sul devido a uma cláusula incomum incluída no contrato firmado pelo governo neste ano com a Johnson & Johnson. O documento confidencial, ao qual o New York Times teve acesso, previa que a África do Sul abrisse mão de seu direito de impor restrições à exportação de doses da vacina.

Popo Maja, porta-voz do Ministério da Saúde sul-africano, disse que o governo não está satisfeito com as exigências, mas não possui a influência necessária para se esquivar delas.

“O governo não teve escolha”, afirmou em comunicado. “Ou assinava o contrato ou não haveria vacina.”

A Johnson & Johnson sempre planejou que algumas das vacinas produzidas pela Aspen saíssem da África, mas nunca revelou quantas doses estava exportando de fato. Os registros mostram que a empresa despachou 32 milhões de doses em meses recentes, mas isso não capta o número total.

Um porta-voz do Ministério da Saúde da Alemanha disse que em abril o país recebeu doses da vacina produzida pela Aspen. Em junho e julho, a Espanha recebeu mais de 800 mil doses.

Críticos dizem que o déficit de vacinas na África do Sul reflete em parte um desequilíbrio de poder entre uma empresa gigante e um país em situação desesperadora. “O poder desproporcional exercido pela Johnson & Johnson é realmente preocupante”, diz Fatima Hassan, advogada de direitos humanos na África do Sul. “Está prejudicando nossos esforços para injetar vacinas no sistema em pouco tempo.”

O quadro é desanimador em todo o continente. Embora vários países africanos tenham recebido pequenas remessas iniciais de vacina J&J na semana passada, elas representam apenas uma fração dos 400 milhões de doses encomendadas pela União Africana. Cerca de 2% dos africanos foram plenamente vacinados até agora.

O diretor científico da Johnson & Johnson, Paul Stoffels, disse que a fábrica da Aspen faz parte de uma rede de produção na qual vacinas são rotineiramente transportadas entre diferentes países para manufatura, inspeção de qualidade e entrega.

“Temos feito o possível para priorizar a África do Sul”, diz. Ele destaca que no início deste ano a J&J disponibilizou cerca de 500 mil doses para imunizar profissionais de saúde sul-africanos e que num momento posterior a fábrica da Aspen passará a fornecer doses exclusivamente a países africanos.

A Aspen é responsável pela etapa final da produção da vacina, um processo conhecido como “preenchimento e acabamento”. Conforme executivos das empresas, algumas das doses da Aspen nunca chegaram a ser usadas, devido ao receio de possível contaminação na fábrica em Baltimore (EUA), responsável pela primeira etapa de produção.

Os problemas nessa fábrica, operada pela Emergent BioSolutions, causaram grande estrago aos estoques da J&J, levando a empresa a atrasar os pedidos em todo o mundo.

Stephen Saad, presidente-executivo da Aspen, diz que a empresa não controla para onde suas doses são enviadas. “Eu gostaria de ver todas indo para a África." A Aspen agora está finalizando doses produzidas numa fábrica na Holanda; 40% irão para a Europa, e as 60% restantes, à África, até o final de setembro. O plano era que só 10% fossem destinadas à África, mas a União Europeia concordou em modificar a distribuição em vista da crise sul-africana.

A campanha de vacinação na África do Sul vem crescendo nas últimas semanas, graças em grande medida a doses da Pfizer encomendadas pelo governo e a doações pelos EUA. Mas apenas cerca de 4 milhões dos 60 milhões de habitantes do país estão plenamente vacinados.

Isso deixou a população vulnerável quando uma terceira onda de casos ganhou força no país. “Em termos do aumento de mortes, a terceira onda tem sido a mais trágica, por ser a mais evitável”, diz Jeremy Nel, diretor de um hospital de Joanesburgo. “Vemos pessoas morrendo às dezenas. Todas elas teriam direito à vacina e estariam entre as primeiras que a receberiam.”

Críticos dizem que Pretória compartilha a culpa pelo baixo índice de vacinação. Inicialmente, o governo contou com uma central de vacinas subsidiada pela ONU, que atrasou as entregas. O país demorou a iniciar negociações com fabricantes. Em janeiro, um grupo de especialistas em vacinação avisou que a “imprevidência” causaria “a maior falha humana em proteger a população desde a pandemia de Aids”.

O acordo da Johnson & Johnson com a Aspen foi anunciado em novembro. A fábrica em Gqeberha foi o primeiro lugar na África a produzir vacinas contra a Covid-19.

A vacina da J&J ganhou importância adicional em fevereiro, quando um ensaio clínico sugeriu que o imunizante da AstraZeneca oferece pouca proteção contra as infecções leves ou moderadas provocadas pela variante beta, que circulava na África do Sul.

Semanas mais tarde, a Johnson & Johnson e o governo firmaram um contrato para a produção de 11 milhões de doses. Em abril, a África do Sul encomendou outros 20 milhões de doses. O contrato impediu o governo de proibir exportações da vacina, citando a necessidade das doses “serem despachadas livremente entre países”.

Sam Halabi, especialista em direito sanitário na Universidade de Georgetown que reviu partes do contrato sul-africano a pedido do New York Times, disse que os termos parecem ser mais favoráveis à empresa farmacêutica do que outros acordos que ele já viu. Autoridades sul-africanas disseram que a Pfizer também buscou proteções legais fortes.

Lá Fora

Receba toda quinta um resumo das principais notícias internacionais no seu email

O contrato previa que a Johnson & Johnson entregasse 2,8 milhões de doses à África do Sul até o final de junho, outros 4,1 milhões de doses até o final de setembro e mais 4,1 milhões de doses até o final de dezembro. (Maja disse que o governo prevê que os 20 milhões de doses adicionais sejam entregues até o final do ano.)

A empresa ficou muito aquém desses objetivos até agora. Até o final de junho, a África do Sul recebera apenas cerca de 1,5 milhão das doses previstas em seu pedido. O número pequeno de doses entregues à União Europeia chegou dentro do prazo previsto.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.