Um "caos inconstitucional" pode se abater sobre os Estados Unidos após a Suprema Corte do país negar a suspensão de uma lei antiaborto aprovada no estado do Texas, afirmou o presidente Joe Biden, elevando o tom da disputa com o tribunal máximo do país, cuja maioria atual é conservadora.
Na noite de quarta (1º), a corte permitiu que o estado do sul dos EUA passe a proibir o aborto após a sexta semana de gravidez, na primeira decisão do tipo desde que o direito à interrupção da gravidez foi garantido para as mulheres americanas, em 1973, decorrente do caso Roe vs. Wade.
Biden subiu o tom nesta quinta (2) ao pedir medidas do Executivo para garantir a conservação do direito no país, uma vez que a decisão da Suprema Corte pode gerar um efeito cascata. O presidente do Senado estadual da Flórida, o republicano Wilton Simpson, por exemplo, disse a uma emissora local que planeja seguir o exemplo do Texas e apresentar uma proibição semelhante na próxima sessão do órgão.
O presidente disse que a Casa Branca vai investigar o que os departamentos de Saúde e Justiça podem fazer como forma de reação.
A nova legislação texana tem uma característica incomum: deixa a fiscalização da aplicação da regra a cidadãos individuais, que poderiam receber recompensas em dinheiro —de pelo menos US$ 10 mil, ou R$ 52 mil, na cotação desta quinta— por processar mulheres que busquem o aborto após a sexta semana de gestação.
O denunciante, que nem precisa morar no Texas ou ter qualquer relação com a grávida, pode também processar quem tiver auxiliado o aborto, a exemplo de quem pagou pelo procedimento ou o motorista de táxi que levou a mulher até a clínica —algo sem precedente no país.
"Isso desencadeia o caos inconstitucional e dá poderes a fiscais autoproclamados, o que pode ter impactos devastadores", disse Biden, em um comunicado em que instrui agências federais a agirem para proteger o direito ao aborto. "Estranhos completos terão o poder de se intrometer nas decisões de saúde mais privadas e pessoais enfrentadas pelas mulheres."
A proibição entrou em vigor nesta quarta e permite que o aborto aconteça apenas num momento em que muitas mulheres não sabem nem sequer que estão grávidas. Assim, a lei equivaleria a uma proibição quase total do procedimento no Texas —o segundo estado mais populoso dos EUA—, já que entre 85% e 90% dos abortos são feitos após a sexta semana de gravidez. Outra consequência seria o provável fechamento de clínicas que realizam a prática, de acordo com grupos ativistas.
A nova regra também não faz diferenciação se a gravidez aconteceu em caso de estupro ou incesto. Pela regra em voga no restante do país, a interrupção da gravidez é permitida enquanto o feto não é viável —até por volta de 22 a 24 semanas.
A decisão do tribunal, por 5 votos a 4, ilustra o impacto das três nomeações conservadoras do ex-presidente Donald Trump para a mais alta corte do país. Um dos seis conservadores do tribunal, John Roberts, porém, juntou-se aos outros três juízes considerados mais progressistas na dissidência.
"A decisão é impressionante", escreveu a juíza Sonia Sotomayor, que votou a favor da suspensão da lei. “Uma lei flagrantemente inconstitucional, projetada para proibir as mulheres de exercerem seus direitos.”
Mesmo garantido há quase 50 anos, o direito ao aborto ainda divide os EUA, de acordo com pesquisa da agência de notícias Reuters com o instituto Ipsos. Cerca de 52% disseram que a prática deveria ser legal na maioria ou em todos os casos, e 36% dizem que deveria ser ilegal na maioria ou em todos os casos.
O número de procedimentos registrados pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA vem em queda. Em 2009, por exemplo, foram 790 mil registros. Em 2018, 620 mil.
Como não há legislação federal sobre o assunto, o direito ao aborto se escora na decisão da Suprema Corte de 1973. A presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, criticou a legislação texana e prometeu colocar um projeto de lei em pauta quando a Casa voltar do recesso, no final deste mês.
Os democratas têm ligeira maioria no Congresso, mas a aprovação na Câmara não garantiria o sucesso no Senado, que exige que 60 de seus 100 membros apoiem a legislação —há 50 senadores democratas.
Pelosi afirmou que a lei representa "uma catástrofe para as mulheres no Texas", sobretudo para as que vêm de comunidades mais pobres ou fazem parte de minorias.
Uma opção que alguns democratas defendem é mudar a regra que exige 60 votos no Senado, de modo que a lei possa ser aprovada com maioria simples, de 51 votos —além dos 50 votos de senadores democratas, a vice-presidente Kamala Harris, também democrata, vota em caso de empate.
"Democratas podem ou abolir a regra de obstrução [que exige 60 votos] ou não fazer nada enquanto milhões de corpos, direitos e vidas são sacrificados por uma minoria de extrema direita", disse a deputada Alexandria Ocasio-Cortez no Twitter. "Não deveria ser uma decisão difícil de ser tomada."
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