Calor extremo causou mais mortes que o furacão Ida em Nova Orleans

Quedas de energia provocadas pelo fenômeno deixaram moradores isolados em apartamentos sem ventilação

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Nicholas Bogel-Burroughs Katy Reckdahl
Nova Orleans | The New York Times

O apartamento de um quarto de Iley Joseph era um lugar ideal para sobreviver a um furacão, sob muitos aspectos. Ficava no terceiro piso, alto demais para ser inundado, de um prédio de construção forte e recente, dentro de um condomínio fechado, de alto padrão, destinado a moradores idosos como ele.

Mas nos dias seguintes à passagem do furacão Ida, o apartamento começou a parecer uma armadilha.

O blecaute que deixou Nova Orleans sem eletricidade inutilizou o ar condicionado e deixou a geladeira funcionando apenas como armário. Pior ainda —o blecaute paralizou os elevadores do prédio, deixando Joseph enclausurado dentro do edifício, já que seus problemas de saúde o impediam de usar as escadas.

Quando conversava ao telefone com os filhos, Joseph, 73, fazia questão de dizer que estava ótimo. Mas a temperatura em seu apartamento, de número 312, não parava de subir. Em 2 de setembro, o quarto dia após a chegada do furacão —e o dia mais quente até então—, um amigo o encontrou deitado ao lado de sua cama, imóvel. “Eu o chamei e ele não respondeu”, contou Jared Righteous. “Percebi que estava morto.”

três pessoas vestidas com fardas camufladas estão sob uma tenda em um espaço aberto. no centro da tenda, há sacos cheios de gelo empilhados
Membros da Guarda Nacional distribuem sacos de gelo em centro comunitário de Nova Orleans, nos EUA - Johnny Milano - 1°.set.21/The New York Times

Foi apenas nos últimos dias, quando a luz voltou a toda a cidade, que as autoridades de Nova Orleans descobriram o número real de mortes decorrentes do furacão Ida. Diferentemente do que ocorreu no Nordeste dos EUA, onde muitos dos que morreram foram levados por enchentes e tornados, em Nova Orleans ficou claro que a maior causa de mortes foi o calor.

Das 14 mortes provocadas pelo furacão na cidade, acredita-se que a de Joseph e de outras nove pessoas foram decorrentes do calor. Especialistas dizem que é provável que haja mais mortos.

E amigos dos que morreram estão começando a questionar se o governo ou os proprietários de imóveis não poderiam ter feito mais para proteger os moradores idosos antes de eles morrerem, em muitos casos sozinhos, em apartamentos e casas em que o calor ficou sufocante.

O calor extremo é um perigo ao qual não damos atenção suficiente”, comentou David Hondula, professor na universidade do estado do Arizona e estudioso dos efeitos de temperaturas muito altas. “Todas as cidades estão apenas começando a entender como seria uma resposta eficaz ao calor extremo.”

Em Nova Orleans, as autoridades montaram em vários pontos da cidade centros de resfriamento com ar condicionado. Distribuíram alimentos, água e gelo em toda a cidade. Mas a ajuda estava fora do alcance de pessoas como Iley Joseph, que não podiam sair de seus prédios. Todas as dez pessoas cujas mortes foram vinculadas ao calor estavam na casa dos 60 ou 70 anos e morreram ao longo de quatro dias de sol sufocante, o último dos quais foi 5 de setembro, uma semana após a passagem do furacão.

Uma das primeiras a falecer foi Corinne Labat-Hingle, que tinha 70 anos e era solteira. Ela havia se mudado para Memphis após o furacão Katrina, mas voltara a Nova Orleans e estava vivendo num conjunto habitacional para pessoas da terceira idade nas proximidades da avenida Saint Bernard, perto do maior parque da cidade. Foi encontrada morta em 2 de setembro, quando a temperatura chegou a quase 34 °C ao ar livre e provavelmente estava ainda mais alta dentro de seu apartamento.

Dois dias mais tarde, em outro dia de calor de 34 °C, quatro pessoas foram encontradas mortas, incluindo Reginald Logan, 74, cujo corpo foi descoberto quando um vizinho viu moscas em sua janela. No dia 5 de setembro, a temperatura passou dos 38 °C, e uma das últimas vítimas do calor foi encontrada morta: Keith Law, 65, que vivia no bairro de Algiers.

Segundo Hondula, é provável que o calor contribua para mais mortes anualmente do que o número oficialmente registrado. Embora o Centro de Controle e Prevenção de Doenças informe menos de 700 mortes anuais decorrentes do calor, alguns estudos estimam que o número real seja entre 5.000 e 12 mil.

No mês passado, o New York Times constatou que 600 pessoas a mais morreram nos estados de Oregon e Washington na última semana de junho, durante uma onda de calor, do que as que teriam morrido normalmente. É um número três vezes maior que as estimativas de mortes ligadas ao calor feitas pelas autoridades estaduais.

As pessoas que morrem de calor podem não perceber que seus sintomas colocam sua vida em risco. E as mortes ligadas ao calor podem ocorrer repentinamente, com poucos sinais anteriores. A causa mais frequente é uma insuficiência cardiovascular, quando o coração não consegue bombear o sangue com rapidez suficiente. São menos frequentes as mortes por insolação, quando a temperatura corporal interna de uma pessoa se eleva em vários graus, e o corpo não consegue se resfriar, levando à falência de órgãos como o cérebro, coração ou rins.

Laura Bergerol, fotógrafa de 65 anos que vivia em Nova Orleans, morreu em 5 de setembro. Antes do furacão, ela planejara evacuar sua casa e ir à Flórida, mas ela disse a amigas que não conseguiu encontrar um quarto de hotel.

Quando conseguiu finalizar seus planos, já era perigoso demais para partir. Depois da tempestade, uma cobrança errônea de US$ 400 (R$ 2.110) em sua conta bancária a deixou sem dinheiro para sair. Ela fez um estoque de velas e se preparou para continuar em seu apartamento no segundo andar de um complexo acessível para artistas no bairro de Bywater, rio abaixo em relação ao Bairro Francês.

“Perdi minha janela de oportunidade”, escreveu ela no Twitter. “Maldito seja o #furacãoIda.”

Os vizinhos de Bergerol disseram que ela ficou dentro do apartamento com as portas e janelas fechadas. Mas parecia estar sobrevivendo. No dia 3 de setembro ela mandou uma mensagem de texto a um vizinho, Josh Hailey, perguntando se podia visitar o gato dele quando ele estivesse fora de casa.

“Tenho muitas guloseimas para ele”, escreveu. No dia seguinte, ela assistiu a uma sessão de “Cinderella” no pátio do prédio, com outros vizinhos. Hailey entrou no apartamento de Bergerol sozinho quando ela não atendeu a porta. Ele a encontrou estirada no chão e tentou reavivá-la, mas já era tarde demais.

Naquela noite, os vizinhos tocaram música de bandas no pátio e dançaram em homenagem a Bergerol, recordando seus olhos azuis vívidos e seu sorriso grande e frequente.

A aquela altura, as autoridades de Nova Orleans tinham começado a perceber o perigo enfrentado pelos moradores idosos. Um dia antes da morte de Bergerol, haviam esvaziado oito apartamentos para idosos, incluindo vários em que moradores haviam morrido.

Agora as autoridades estudam a possibilidade de decretar que durante desastres naturais, imóveis subsidiados para moradores idosos ou com deficiências contem com geradores, recebam inspeções para acompanhar o bem-estar dos moradores ou tenham que ter um zelador no imóvel 24 horas por dia.

As medidas propostas estão ganhando impulso em parte em função de mortes como a de Iley Joseph, o morador que ficou preso no apartamento 312.

Homem negro vestido com uma camisa com listras coloridas ao lado de outro homem negro mais jovem, vestido com uma camisa preta, e com uma criança sorridente no colo. Os três estão sentados em um sofá. É uma foto de família.
Iley Joseph (à esq.), 73, ao lado do filho, Iley Joseph Jr., e do neto - Iley Joseph Jr./Arquivo pessoal - The New York Times

Joseph era vendedor de autopeças, aposentado quatro anos antes. Ele costumava bater papo com seus vizinhos, e sua rotina incluía tomar café e comprar carolinas em vários lugares da cidade. Era conhecido por sua fé religiosa, seu amor pela família e, para alguns, sua resposta habitual de “sim, de fato”, que levou seus netos a apelidá-lo de "Vovô Sim De Fato".

Nos dias seguintes ao furacão, os vizinhos ficaram de olho em Joseph, que estava vivendo de sanduíches de manteiga de amendoim e geleia. Uma amiga lhe levou uma refeição quente. Um vizinho do outro lado do corredor carregou o telefone de Joseph, usando uma bateria de carro e um conversor.

Mas o dia 2 de setembro foi o mais quente até então. Por volta das 13h45 o calor chegou a quase 39,5 °C, e a bateria do celular de Joseph acabara outra vez. Ele pôs a cabeça para fora da porta e chamou uma mulher que passava no corredor. A vizinha, Rhonda Quinn, achou que ele não estava bem e perguntou se ele precisava de ar. Ele fez pouco caso. Respondeu, brincando, que depois de vários dias de calor estava cheirando mal demais para sair de casa.

Ele disse que o que precisava era carregar seu telefone para poder fazer uma ligação. Quinn encontrou alguém para ajudar, mas quando tentou devolver o telefone a Joseph, antes das 15h, ele não atendeu a porta, apesar de ela bater várias vezes. Ela supôs que ele tivesse saído e desistiu de bater.

Pouco depois disso, um amigo de Joseph da igreja, Jared Righteous, chegou com um saquinho de tortas de aveia e outros lanches. Bateu à porta de Joseph e ninguém respondeu. Abrindo a porta, Righteous encontrou Joseph caído ao lado da cama, como se tivesse estado sentado na beirada, olhando pela janela.

Sua morte deixou seus dois filhos em choque e entristecidos, sem conseguir entender como seu pai conseguiu sobreviver à fúria do furacão sem sofrer um arranhão, apenas para sucumbir no calor que se seguiu. “Ele não morreu na enchente, não morreu atingido por um raio”, disse seu filho mais velho, Iley Joseph Jr., 45. “Simplesmente se foi.”

Tradução de Clara Allain

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