Um jogo online em que o herói deve tomar a base do inimigo é o novo “ópio espiritual” da juventude chinesa a ser combatido, segundo o governo da China sobre Honor of Kings, e-sport (esporte eletrônico) que virou febre em toda a Ásia e que movimenta milhões de yuans.
Não é uma metáfora qualquer: remete à droga introduzida pelos ingleses para viciar e dominar os chineses no século 19, passagem remoída até hoje pela China, que originou o que chamam de “século da humilhação”.
Para evitar uma epidemia de viciados, o governo do “Papai Xi”, como a imprensa estatal por vezes se refere ao líder do país, resolveu impor um limite de uma hora de jogo por dia às sextas e aos fins de semana —isso nos períodos de aula; nas férias, está liberado jogar por 1h todos os dias da semana.
O limite veio no mesmo momento em que o país anunciou que vai incluir no currículo escolar aulas sobre a doutrina política de Xi Jinping, o mais poderoso dirigente do país em décadas.
A limitação do período de jogos online é a mais recente (e barulhenta) de uma série de iniciativas que o Partido Comunista Chinês tem feito sobre a internet.
O país, que já controla a rede, censura discussões sensíveis e bloqueia determinados sites, tem feito agora o que especialistas consideram uma espécie de revolução, inclusive com aspectos elogiados e que podem ser adotados em outros lugares.
A novidade de mais impacto foi a aprovação pelo Congresso de uma nova legislação de proteção de dados pessoais, que impede a coleta sem consentimento prévio e regula o armazenamento de informações privadas.
Outro projeto, ainda uma ideia em discussão, quer impor regras mais rígidas para o uso de algoritmos de recomendações por plataformas online, que dão sugestões de acordo com o que o usuário costuma assistir ou pesquisar.
Esses algoritmos são alvo de especialistas em internet e cientistas políticos em geral por criarem bolhas e facilitar em alguns casos a radicalização de posições políticas, práticas que empresas como Google e Facebook têm sido acusadas de permitir pelo menos desde a eleição do ex-presidente americano Donald Trump.
As propostas da Administração do Ciberespaço da China incluem a possibilidade de desativar as recomendações, proibir a discriminação de preços com base no histórico e a necessidade de aprovação da autoridade de internet quando o algoritmo puder influenciar a opinião pública.
Diretor da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa, Rafael Zanatta diz que é possível analisar as medidas por diferentes óticas.
Primeiro, por um avanço sobre os gigantes de tecnologia do país, como a Tencent (dona dos jogos online mais populares e do app WeChat), numa forma de o governo “mostrar quem manda”.
Há também, no interesse em se firmar como potência, o desejo de exportar um modelo de regulação, algo que a Europa fez na última década com leis rígidas sobre o que empresas de tecnologia podem coletar do usuário.
Mas a regulação também “acompanha transformações profundas da sociedade chinesa”, que milenarmente valoriza o coletivo sobre o indivíduo, mas que tem sido “contaminada” por valores ocidentais nas últimas décadas, que tendem a uma maior individualização.
“Isso levou à aprovação de um Código Civil que tem um capítulo específico sobre direitos de personalidade, no qual se inclui o direito à proteção de dados pessoais.”
Professor da FGV Direito Rio e coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV, Luca Belli afirma que a China faz o que vários países do Ocidente já tentaram fazer: “enquadrar” as gigantes da tecnologia —o que é muito mais fácil em um governo autoritário.
Entre os elementos interessantes da nova legislação, ele destaca a obrigatoriedade das plataformas de internet de terem conselhos com especialistas externos que possam avaliar e orientar as políticas de uso de dados, a gestão de algoritmos e a segurança da informação, aos moldes do que foi criado pelo Facebook há um ano.
Mesmo a imposição sobre quantas horas os adolescentes podem jogar videogame faz sentido, afirma ele, por ser uma questão de saúde pública, discutida também em países ocidentais.
“É comum regular produtos feitos para criar dependência, como o Brasil fez com os cassinos. A regulação de jogos atinge adolescentes, que têm defesas psicológicas extremamente frágeis”, diz Belli, que pesquisa a internet nos países do Brics, bloco formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
A restrição, é claro, provocou reações entre os chineses, com rechaço sobretudo entre os mais jovens.
“Dizem que os jogos são o novo ópio espiritual. Ou o autocontrole dessas pessoas é ruim ou os pais não estão aptos a educar bem os filhos. Eu formei meu caráter pelos jogos e fiz muitos bons amigos. Embora eu mal jogue mais hoje em dia, os anos que passei em lan houses foram os mais felizes da minha vida”, escreveu um jovem na rede social Weibo.
Proteção de dados
Nova lei exige consentimento para empresas coletarem dados pessoais, impõe regra sobre regulação e limita ao mínimo informações a serem recolhidas
Jogos online
Governo limita a 1h por dia, somente às sextas e aos finais de semana, período em que menores de idade podem jogar na internet —durante a madrugada já era proibido. Nas férias, no entanto, está permitido jogar todos os dias
Algoritmos de recomendação
Ainda em discussão, ideia permite desativar recomendações e proibir empresas de discriminar preços de acordo com comportamentos do usuário
Investigação contra gigantes
Governo investiga ‘tycoons’, como a Didi (dona da 99 no Brasil), por supostamente violar a privacidade de usuários e quer proibir que empresas que armazenam grandes quantidades de dados abram operações em bolsas de valores no exterior
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