Combate ao autoritarismo requer união tática de forças antagônicas, diz Anne Applebaum

Em livro, jornalista partiu de rupturas pessoais para aprofundar compreensão de como autocratas vêm persuadindo cada vez mais pessoas

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São Paulo

Em "Twilight of Democracy - The Seductive Lure of Authoritarianism” (crepúsculo da democracia - o apelo sedutor do autoritarismo), a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum, 57, parte de rupturas pessoais com familiares e amigos para aprofundar como líderes autocratas vêm persuadindo cada vez mais pessoas comuns para o campo antidemocrático.

Em um sobrevoo global, a autora esmiúça as estratégias comuns desses líderes e oferece sugestões de como enfrentá-los. Sobre a forma e o conteúdo do governo brasileiro de Jair Bolsonaro, Applebaum afirma que ele não difere dos demais e que, por antecipação, já copia os momentos finais da Presidência Trump nos EUA.

A escritora Anne Applebaum
A jornalista e historiadora Anne Applebaum - Divulgação

Para a vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção em 2004 pelo livro "Gulag: Uma História” (Ediouro), o combate aos autocratas deve passar necessariamente pela união tática de forças políticas antagônicas, mas que tenham o objetivo comum de se livrar deles.

"É preciso que haja uma trégua, onde sejam colocadas de lado as diferenças para que se possa concordar sobre algo bem mais importante", afirma Applebaum, que fará uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento em 29 de setembro.

Políticos populistas e antidemocráticos têm usado o mesmo roteiro na Europa e nos EUA. No Brasil, Bolsonaro procura desqualificar as instituições e ataca a mídia. Se o roteiro é sempre parecido, já não é tempo de as democracias aprenderem formas eficientes de combater essas ameaças? Concordo que existe um padrão nesses ataques à democracia, com os candidatos a autocratas não liberais imitando uns aos outros e estudando o que funciona em cada país. No Brasil, vemos o presidente Bolsonaro imitando Trump mesmo antes do resultado das eleições [de 2022], ao dizer que, caso ele não vença, elas terão sido fraudadas. O ponto é que os opositores a esse tipo de político precisam estar preparados, pois isso não é algo que os Estados democráticos necessariamente tenham como combater. Tem de partir das pessoas que defendem a democracia e seus valores liberais.

Essas pessoas, no Brasil, nos EUA e na Europa, deveriam se reunir e aprender também uns com os outros as táticas de combate, para que isso não volte a acontecer no futuro. No caso dos autocratas, não existe uma aliança ou uma rede, mas eles estão aprendendo uns com os outros.

Mas não tenho certeza de que seus oponentes estejam fazendo a mesma coisa. Embora sofram do mesmo mal, eles normalmente estão divididos em centro-direita, centro-esquerda e verdes. Representantes de sindicatos e associações empresariais também tendem a não gostar uns dos outros. Mas é preciso que sejam formados novos tipos de alianças e relacionamentos para confrontar essa ameaça.

A senhora afirma que o autoritarismo atrai pessoas que não toleram a complexidade, que são alérgicas a debates intensos. Os progressistas deveriam se apropriar das mesmas táticas de comunicação dos autoritários? A grande questão para os oponentes de figuras autoritárias é exatamente essa. Quando temos sociedades profundamente polarizadas, como nos EUA, na Polônia ou no Brasil, o que é mais efetivo? Mobilizar a sociedade para o enfrentamento unindo partidos antagônicos [com um objetivo comum] ou utilizar uma linguagem mais raivosa e direta?

Não existe uma fórmula. A melhor campanha talvez tenha de usar os dois caminhos. Um tipo de linguagem que vai unir as pessoas de vários campos políticos e, ao mesmo tempo, ter certeza de que as pessoas estarão suficientemente motivadas.

Em sua pergunta, você usou o termo progressistas. Mas é importante lembrar que a luta não deve ser feita apenas pela esquerda ou pelos progressistas. Ela deve incluir a centro-direita, empresários e mesmo aquela parte da população que se considera conservadora e está incomodada com as táticas dos autocratas. É preciso que haja uma trégua, em que sejam colocadas de lado as diferenças, para que se possa concordar sobre algo bem mais importante.

Como a mídia pode contribuir para trazer mais racionalidade ao debate político? Muitas vezes a mídia, especialmente as TVs, embora isso também ocorra nos jornais, acabam refletindo os argumentos que as pessoas estão usando no Twitter. Isso ocorre particularmente porque muitas empresas de mídia, desde o advento da internet, estão fragilizadas. Na busca por mais leitores e audiência, acabam caindo nessa armadilha de usar o sensacionalismo ou uma linguagem raivosa para conquistar leitores.

Ando envolvida em algumas discussões com jornais italianos, além de outros, para entender se a mídia pode analisar melhor o que vem fazendo. E isso pode até levar a um novo modelo de negócio, de construção de consensos, unindo mais lados do espectro político.

Podemos pensar em nós mesmos não apenas como parte de uma cruzada [contra autocratas] ou como a representação de apenas uma linha de pensamento. Podemos pensar em nós mesmos como provedores de conteúdo para um número bem maior de leitores de vários lados, além de formadores de consensos.

A senhora afirma no livro que políticos autoritários bem-sucedidos costumam usar as melhores pessoas da elite intelectual em seus propósitos. No Brasil, temos uma administração que nem sequer disfarça a ignorância em temas básicos. Seria motivo de otimismo para os brasileiros que discordam do governo? Não conheço a política brasileira o suficiente para comentar a natureza das pessoas que fazem parte do governo Bolsonaro, mas deve ser o mesmo que ocorre na Polônia [risos].

Mas lembre-se que, muitas vezes, as pessoas que trabalham nas campanhas desses líderes autoritários são muito bem formadas. Em muitos casos, podem ser pessoas frustradas que se sentiram pouco reconhecidas e recompensadas em governos anteriores e que não necessariamente se enxergam como sem talento. Pelo contrário. Muitas consideram que enfim estão conseguindo o que merecem.

Infelizmente, o resultado desse processo é que instituições que deveriam se manter neutras ao longo do processo acabam se politizando.

O economista francês Thomas Piketty e outros especialistas em desigualdade argumentam que o aumento da disparidade de renda deixou os eleitores mais vulneráveis ​​a mensagens populistas. Qual sua opinião? Concordo que o aumento da desigualdade causa um efeito de distanciamento nas pessoas, que acabam por se sentir fora do sistema. Dependendo do país, isso pode ser muito marcante.

Mesmo porque os autocratas agem de maneira a oferecer uma espécie de filiação a algo. “Somos os verdadeiros brasileiros ou americanos!”, dizem. Mas é preciso ser muito cuidadoso em pensar que essa é a única razão e que, acabando com o problema da desigualdade, as coisas estarão resolvidas.

Claro que devemos diminuir a desigualdade. Mas, no caso dos EUA, muitos dos que votaram em Trump não foram necessariamente os mais pobres, que vivem de seguro-desemprego ou de outros tipos de ajuda social. Muitos de seus eleitores são extremamente ricos. E Trump conseguiu um apoio bastante grande entre membros da classe média. [A ascensão dos autocratas] não é apenas um fenômeno econômico. Mas concordo que isso acaba contribuindo para um sentimento de alienação de parte da sociedade.

No geral, como a senhora avalia o atual estágio das democracias liberais ocidentais? É uma situação bastante frágil internamente, em vários países. Mas há aí também um componente externo importante, pois as democracias liberais têm de lidar agora com um grande desafio: a China, país que não só consegue crescer rapidamente como está exportando seu modelo para o resto do mundo.

De uma maneira falsa, mas que tem apelo, os chineses oferecem uma alternativa para o desenvolvimento. Isso tem ressonância, particularmente, entre os autocratas. Eles podem dizer: “Veja, criando um sistema de partido único, acabando com a oposição política e controlando a internet podemos conseguir desenvolvimento e crescimento”. Isso esconde vários elementos da ascensão da China, especialmente o fato de que o país só começou a crescer depois que permitiu a adoção de modelos de negócios privados.

A coisa mais importante que temos a fazer é consertar internamente nosso próprio sistema. Isso passa por regular melhor o que é produzido na internet e nas redes sociais; aumentar o controle sobre o sistema financeiro internacional, que se tornou bastante cleptocrático, permitindo alimentar os autocratas; e modernizar nossas próprias democracias nessa era digital.


Anne Applebaum, 57

Formada em história e literatura pela Universidade Yale e mestre em relações internacionais pela London School of Economics, é escritora e integrou o conselho editorial do jornal The Washington Post. Vencedora do prêmio Pulitzer de não ficção pelo livro "Gulag: Uma História” (2004)

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