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Crise no governo e carta de Cristina expõem fraturas internas do peronismo na Argentina

Ministros se demitiram após derrota eleitoral; deputada kirchnerista chama presidente de usurpador em áudio

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Belo Horizonte e Guarulhos

Um dia depois de receber o pedido de renúncia de cinco ministros, o presidente argentino, Alberto Fernández, tenta juntar as peças de seu governo em meio a uma crise doméstica que ganhou novos contornos nesta quinta-feira (16). A situação expôs não só a insatisfação popular, como também fraturas internas da aliança que possibilitou sua eleição para a Casa Rosada.

Ao longo do dia, não houve confirmação oficial sobre se Fernández aceitou os pedidos de demissão. Apesar de o mandatário ter tentado apaziguar as relações com sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner, no início da noite ela divulgou no Twitter uma carta recheada de críticas.

A ala do governo ligada a Cristina, mais à esquerda, já vinha pressionando por mudanças nos rumos políticos, com mudanças ministeriais que incluiriam, segundo a imprensa argentina, o chefe da pasta de Economia, Martín Guzmán. A reviravolta interna se agravou após os resultados das primárias de domingo (12), que terminaram com uma derrota para a coalizão governista Frente de Todos.

O presidente argentino, Alberto Fernandéz, e sua vice, Cristina Kirchner, pouco após tomarem posse - Ricardo Moraes - 10.dez.19/Reuters

Na mensagem, Cristina afirma ter mantido 18 reuniões com o presidente ao longo deste ano, nas quais relatou "uma delicada situação social [...] e a falta de efetividade em distintas áreas do governo". Ela chama no texto a política de ajuste fiscal de equivocada e diz que teria o alertado de possíveis consequências eleitorais e do risco de derrota nas primárias.

A vice-presidente classifica o resultado de uma "catástrofe política" e critica a reação do presidente, dizendo que ele "fingia normalidade". Ainda segundo o texto, partiu dela a iniciativa de se reunir mais uma vez com Fernández na terça (14). Cristina afirma que no encontro propôs um "relançamento do governo", com trocas na equipe —mas nega ter pedido a cabeça de Guzmán.

Ela encerra afirmando que chamou, pessoalmente, Fernández para encabeçar a chapa presidencial da coalizão. "Só peço a ele que honre aquela decisão [...] e a vontade do povo argentino", escreve. Depois de dizer que "governar não é fácil, e governar a Argentina menos ainda", Cristina destaca ter convivido com um vice opositor, em referência a Jorge Cobos, e diz: "Durmam tranquilos, isso não vai acontecer comigo".

A crise no governo já tinha ganhado novos elementos mais cedo, quando a imprensa argentina divulgou um áudio em que a deputada Fernanda Vallejos, aliada de Cristina, refere-se a Fernandéz como "doente, usurpador, cego e surdo". Ela afirma que o presidente tinha se "entrincheirado" na Casa Rosada após o fracasso nas primárias e que só estava ali graças à aliança que costurou com o kirchnerismo.

No Twitter, antes da divulgação da carta da vice, Fernandéz pregou moderação. "Temos de dar respostas honrando o compromisso assumido em dezembro de 2019 [quando assumiu a presidência]. Não é a hora de semear disputas que nos desviem desse caminho", escreveu. "A arrogância e a prepotência não me abalam. A gestão continuará da maneira que eu considerar conveniente. Para isso que eu fui eleito."

Além da disputa de poder –Cristina e Fernandéz não tinham relação próxima antes da eleição–, outro ponto central do embate entre peronistas e a ala kirchnerista é a política econômica. Em razão das negociações da dívida argentina com o FMI (Fundo Monetário Internacional), o ministro Guzmán defende ajustes fiscais, e Cristina já defendeu que o país não tem recursos para bancar a dívida.

Na carta desta quinta, a terceira com críticas ao presidente desde o começo do mandato, a vice diz que "será impossível resolver os problemas deixados pelo macrismo [referência ao ex-presidente Mauricio Macri], de baixos salários, alta inflação, endividamento com credores privados e a volta do FMI com um empréstimo de US$ 44 bilhões".

A mensagem, apoiada por kirchneristas, foi alvo de críticas na Casa Rosada e mesmo na oposição. Facundo Manes, ligado à coalizão Juntos, escreveu: "Em vez de redefinir o rumo do país e trazer calma, estressam e confundem ainda mais a sociedade em meio a uma crise. Uma irresponsabilidade sem precedentes".

Fernandéz, que cancelou uma viagem que estava prevista para o México nesta sexta, atuou ainda para que se suspendessem manifestações de apoio ao governo, temendo que os protestos pudessem causar ainda mais divergências com nomes fiéis ao kirchnerismo.

Quem saiu às ruas, então, foram grupos mais à esquerda, em atos pedindo maiores subsídios para refeitórios e alimentação e enfatizando posição contra um eventual acordo com o FMI. Um dos grupos que organizaram as manifestações contrárias ao presidente foi o Movimento Socialista dos Trabalhadores (MST), que apoia a Frente de Izquierda, coalizão que ficou em terceiro lugar nas prévias argentinas.

De acordo com a imprensa argentina, apesar das tentativas de buscar uma trégua, internamente e a aliados próximos Fernández relatou que estava indignado com a vice-presidente e que não o obrigariam a fazer nada por meio de pressão. Ainda em relação às demissões de ministros, o governo divulgou agenda de compromissos de ao menos dois deles (Juan Cabandié, do Ambiente, e Tristán Bauer, da Cultura).

A Argentina está em recessão desde 2018, quando ainda era governada por Macri. Eleito em 2019, o peronista Fernández não conseguiu colocar a economia do país nos trilhos. A inflação está em 50% ao ano, e a ela se somam críticas à gestão da pandemia —o país tem, hoje, 114 mil mortes e cerca de 40% da população totalmente imunizada— e desgastes de ordem pessoal.

Em agosto, o presidente foi indiciado devido à realização de uma festa de aniversário para a primeira-dama, Fabiola Yáñez, em um momento em que as restrições para conter o avanço do coronavírus estavam em sua fase mais dura no país.

A crescente insatisfação popular foi escancarada nas prévias de domingo, quando a frente governista foi derrotada nas primárias para o pleito legislativo de 14 de novembro, ficando com cerca de 30% dos votos. Em primeiro lugar ficou a principal força de oposição, a coalizão de centro-direita Juntos, liderada por Macri, que alcançou 40,02%.

"Fizemos algo errado e precisamos entender o que foi", disse Fernández na segunda. "O rumo tomado em 2019 não vai ser alterado. Existem razões pelas quais as pessoas não nos acompanharam nessa votação, e nós agora vamos escutá-las melhor."

Com AFP

Erramos: o texto foi alterado

A sigla MST foi incorretamente indicada como Movimento Sem Trabalho. Na verdade, a abreviação do partido argentino significa Movimento Socialista dos Trabalhadores. 

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