Democracia sempre foi frágil, nós que nos esquecemos disso, diz Anne Applebaum

Jornalista e historiadora americana participou do ciclo Fronteiras do Pensamento

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São Paulo

O relativo sucesso de grandes democracias ao redor do mundo nos últimos anos fez com que nos esquecêssemos da fragilidade desse sistema, algo que sempre existiu, afirmou a jornalista e historiadora americana Anne Applebaum, 57, em participação no ciclo Fronteiras do Pensamento, nesta quarta (29).

“O que aconteceu no último meio século é que, devido ao relativo sucesso da democracia americana e sua influência, começamos com essa ideia de que a democracia é inevitável, não vai terminar”, disse ela. “E o erro foi esse. Imaginarmos que duraria para sempre.”

Palestra da jornalista Anne Applebaum no evento Fronteiras do Pensamento, mediada por Leandro Narloch
Palestra da jornalista Anne Applebaum no evento Fronteiras do Pensamento, mediada por Leandro Narloch - Reprodução

A historiadora destacou a importância de entender esse passado, no qual também houve crises, para lidar com o presente, em que “uma série de coisas aconteceram juntas para deixar a democracia em perigo” —entre as quais, a redução da influência americana e a ascensão da China e de outras autocracias.

Houve também uma revolução da natureza da informação política, que dividiu as pessoas em bolhas —cenário potencializado pelas redes sociais— e ajudou a fomentar a polarização em quase todos os países.

“A polarização faz a democracia ser praticamente impossível. Se seu rival é um inimigo, ele não pode chegar ao poder”, disse, em referência a políticos que não se veem mais simplesmente como cidadãos que discordam.

Esses são alguns dos elementos que levaram à maior crise desde a Segunda Guerra Mundial, segundo a historiadora. “Para quem está vivo hoje, não é como nada do que já vimos.”

Se por um lado o fracasso democrático bate à porta, a manutenção do sistema requer mais do que um conjunto de leis. “Não só as instituições impedem democracias de virarem ditaduras e o ódio de se tornar o foco do debate político. Importa também a criação de uma cultura democrática.”

Com um arcabouço democrático bem estabelecido, uma linguagem que lance dúvidas em relação ao sistema eleitoral, como a usada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), seria rapidamente rejeitada.

Para ela, esse tipo de retórica “pode ser muito perigosa para a democracia, porque concede a uma parte da sociedade o sentimento de que o resultado [da eleição] pode ser mudado”. Como visto nos EUA, sentimentos assim levaram à invasão do Capitólio em 6 de janeiro por apoiadores de Donald Trump.

Ainda sobre o Brasil, a jornalista alertou que a distinção entre democracia e ditadura não é tão clara como as pessoas pensam. “Muitos acreditam na ideia de que democracias terminam com tanques nas ruas e um coronel assumindo o poder. Isso é uma ideia do século 20”, afirmou. “É muito provável que acabem com líderes democraticamente eleitos que chegam ao poder e minam as instituições.”

Por isso, Applebaum discorreu sobre o papel do Judiciário, alvo de ataques do bolsonarismo no Brasil, ao ser questionada pelo mediador Leandro Narloch, colunista da Folha. Ela destacou que a relação correta entre tribunais superiores e políticos eleitos é constantemente redebatida em todas as democracias ao longo do tempo. “Juízes que veem sua função como a de implementar a Justiça e o Estado de Direito são importantes, impedem políticos que tentam minar o sistema, facilitar sua própria reeleição”, destacou. “[Esses políticos] precisam de freios, e um desses freios é a Suprema Corte.”

Sobre o papel da mídia, a historiadora contrapôs a atuação de grandes jornais e emissoras com a das redes sociais. “São organizações antiquadas, que podem ter falhas, mas muitas delas tinham como fundamento um comprometimento com a objetividade, a checagem de fatos; e serviam como um filtro, eliminando teorias da conspiração e tirando o extremismo do diálogo.”

Já na internet, o cenário é dividido e especializado, condições potencializadas pela pandemia de Covid-19, já que as pessoas migraram boa parte de seu dia a dia para o online. “As regras desse mundo não encorajam práticas democráticas, de criar consenso.” Para ela, o modelo de negócios alimenta o problema, já que quem viraliza atrai mais anúncios.

A solução, segundo a historiadora, passaria por formas de regulação para criar diálogos melhores. “Não é censurar. É mudar o algoritmo para criar um debate construtivo, o que é científica e tecnologicamente possível, mas as empresas precisam querer fazer.”

Applebaum foi a terceira palestrante da 15ª temporada do ciclo Fronteiras do Pensamento, que nesta edição traz o tema “Era da Reconexão”. Antes dela participaram Jared Diamond e Steven Pinker.

Nos próximos meses, haverá ainda conferências de Yuval Noah Harari, Margaret Atwood, Niall Ferguson, Carl Hart e Pavan Sukhdev. Os eventos online agora contam com a tecnologia Aximmetry, que permitiu a Applebaum e Narloch estarem juntos em um palco virtual, apesar de a americana estar em Washington, e o brasileiro, em São Paulo.

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