EUA e Austrália esconderam da França acordo para construir submarinos

Macron considera negociações secretas 'traição' e ordenou retirada de embaixadores dos dois países

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The New York Times

Os Estados Unidos e a Austrália se esforçaram ao extremo para manter Paris no escuro enquanto negociavam secretamente um plano para construir submarinos nucleares, fazendo naufragar o maior contrato de defesa da França e enfurecendo o presidente Emmanuel Macron, que na sexta-feira (17) ordenou a retirada dos embaixadores franceses dos dois países.

A decisão de Macron foi uma escalada inesperada e chocante da ruptura entre Washington e Paris, num dia em que os dois países tinham planejado comemorar uma aliança que remonta à derrota da Grã-Bretanha na Guerra de Independência dos EUA. Mas ela foi provocada pela percepção francesa de que dois de seus mais próximos aliados estavam negociando em segredo havia meses.

Biden durante conferência sobre segurança com o premiê britânico Boris Johnson (dir.)  e o premiê australiano Scott Morrison
Biden durante conferência sobre segurança com o premiê britânico Boris Johnson (dir.) e o premiê australiano Scott Morrison - Brendan Smialowski-15.set.21/AFP

Segundo entrevistas com autoridades americanas e britânicas, o governo dos Estados Unidos estava em conversações desde a posse do presidente Joe Biden para armar a marinha australiana com uma frota de submarinos movidos a energia nuclear, capazes de patrulhar áreas do mar do Sul da China e além, que Pequim tenta dominar com forças militares.

Mas havia uma coisa em seu caminho: um acordo de US$ 60 bilhões segundo o qual a Austrália compraria da França uma dúzia de submarinos movidos a energia convencional, muito menos sofisticados e bem mais ruidosos.

Para Biden, que fez da reação à China um dogma central de sua política de segurança nacional, os submarinos franceses não serviriam. Eles não tinham a capacidade de cruzar o Pacífico e aparecer inesperadamente nas praias chinesas —acrescentando um elemento de vantagem militar para o Ocidente. E os australianos, segundo autoridades, chegaram à mesma conclusão há muito tempo, depois de serem provocados pela China cada vez mais poderosa.

Em diversas reuniões com seus homólogos franceses —algumas incluindo Biden e o secretário de Estado, Antony Blinken—, os americanos não deram à França um aviso sobre seus planos de abortar o acordo com o país, disseram autoridades que pediram para manter o anonimato. As autoridades americanas só contaram aos franceses sobre o novo acordo horas antes que ele fosse anunciado publicamente na Casa Branca, em uma reunião virtual com Biden e os primeiros-ministros britânico, Boris Johnson, e australiano, Scott Morrison.

A decisão de Biden foi o resultado de um cálculo brutal que os países às vezes fazem, em que um aliado está decidido a ser mais estrategicamente vital que outro —algo que os líderes nacionais e diplomatas não gostam de admitir em público. E foi um sinal de que conforme Biden começa a executar o que o governo Obama, 12 anos atrás, chamou de "giro para a Ásia", há um risco de pisar em minas terrestres políticas enquanto antigos aliados tradicionais são deixados para trás.

"Embora o giro tenha sido descrito como um giro para a Ásia sem se afastar de outros lugares, isso simplesmente não é possível", disse na quarta Richard Fontaine, CEO do Centro para uma Nova Segurança Americana, que tem antigas ligações com os atores australianos e americanos no negócio. "Os recursos militares são finitos. Fazer mais em uma área significa fazer menos em outras."

Também significa aparentemente ocultar negociações de alguns de seus mais próximos aliados.
Quando o governo Biden começou a envolver a Austrália e a Grã-Bretanha seriamente em sua estratégia emergente para enfrentar a China, um contrato de três anos no valor de US$ 60 bilhões ou mais para uma dúzia de submarinos, a serem construídos principalmente pelos franceses, já estava acima do orçamento e vacilando, disseram autoridades americanas.

Os submarinos eram baseados em uma tecnologia de propulsão tão limitada em alcance e tão fácil para os chineses detectarem que estaria obsoleta quando os primeiros submarinos fossem colocados na água, talvez daqui a 15 anos.

Havia uma alternativa óbvia —o tipo de submarino a energia nuclear utilizado pelos americanos e pelos britânicos. Mas as autoridades americanas e australianas concordaram que se os franceses soubessem que iam frustrar um dos maiores contratos de defesa de sua história eles quase certamente tentariam sabotar o plano alternativo, segundo autoridades informadas sobre as discussões entre Washington e Canberra.

Além disso, as autoridades australianas concluíram que a tecnologia francesa —e até seus submarinos nucleares— não seria compatível com os submarinos americanos e britânicos que eles queriam copiar. E suspeitaram que conforme os chineses aperfeiçoarem suas capacidades antissubmarinos, que hoje são um tanto limitadas, os modelos franceses seriam mais suscetíveis à detecção.

Então decidiram manter o trabalho restrito a um grupo muito pequeno de autoridades e não o mencionaram aos franceses, mesmo quando Biden e Blinken se reuniram com seus colegas franceses em junho.


Biden não mencionou os planos durante uma conversa informal com Macron em uma reunião de cúpula em junho na Cornualha (Grã-Bretanha), onde se sentaram em espreguiçadeiras diante do mar e falaram sobre o futuro da aliança atlântica.

Biden, Johnson e Morrison se reuniram no mesmo dia, discutiram o acordo emergente e, em uma declaração vaga que parece mais reveladora hoje do que na época, referiram-se ao "aprofundamento da cooperação estratégica entre os três governos" para enfrentar um ambiente de defesa em mudança no Indo-Pacífico.

Três dias depois, Morrison se encontrou separadamente com Macron, mas não deu a impressão de que estivesse repensando o acordo, insistem os franceses.

Segundo autoridades francesas, Blinken também ficou calado em 25 de junho, quando seu homólogo francês, Jean-Yves Le Drian, o recebeu em Paris —onde Blinken passou seus anos de estudante secundarista— e salientou a importância do acordo do submarino francês.

E tão recentemente quanto 30 de agosto, quando os ministros da Defesa e das Relações Exteriores da França e da Austrália tiveram sua "consulta" anual, eles emitiram um comunicado conjunto dizendo que os dois países estavam comprometidos a aprofundar a cooperação na indústria de defesa e "salientaram a importância do programa Future Submarine". Nesse momento, os australianos sabiam que o programa estava morto.

O embaixador francês nos Estados Unidos, Philippe Étienne, disse em várias entrevistas que soube do acordo em reportagens vazadas que surgiram na mídia australiana e no site Politico. Outras autoridades francesas disseram ter desconfiado de que havia alguma coisa há uma semana, mas não tiveram uma resposta imediata de Blinken ou do secretário da Defesa, Lloyd Austin. A primeira autoridade americana a discutir os detalhes com Étienne foi Jake Sullivan, assessor de segurança nacional, algumas horas antes do anúncio público na quarta.

O presidente da França, Emmanuel Macron (segundo da esq. para a dir.), e o então primeiro-ministro australiano, Malcolm Turnbull (centro), sobre o submarino HMAS Waller, da marinha australiana, em Sydney
O presidente da França, Emmanuel Macron (segundo da esq. para a dir.), e o então primeiro-ministro australiano, Malcolm Turnbull (centro), sobre o submarino HMAS Waller, da marinha australiana, em Sydney, em 2018 - Brendan Esposito - 2.mai.18/AFP


As autoridades americanas insistem que não cabia a elas falar com os franceses sobre seu acordo com a Austrália, e sim às autoridades australianas. O governo chinês também não foi avisado, o que não surpreende, já que a posição oficial dos EUA é que o acordo dos submarinos não visa nenhum país em particular.

Mesmo antes que Macron chamasse os embaixadores, assessores de Biden pareceram surpresos com a ferocidade da reação francesa, especialmente a caracterização feita por Le Drian de que foi "uma facada nas costas". Eles sugeriram que os franceses estavam sendo excessivamente dramáticos e acreditavam que os dois países gradualmente voltarão às relações normais. A história sugere que talvez eles tenham razão.

Nesse caso, as autoridades americanas dizem que a decisão de jogar fora o contrato existente entre França e Austrália e substituí-lo por um que ligaria a Austrália tecnológica e estrategicamente ao programa do submarino nuclear virtualmente não provocou debate interno, segundo participantes.

O motivo foi simples: na Casa Branca de Biden, o imperativo de desafiar a pegada crescente da China e seus esforços para levar a marinha americana para leste, ao próximo arquipélago no Pacífico, continua predominante.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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