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Judiciário tem poder limitado para acabar com debate sobre aborto, diz professora

Para Mary Ziegler, nova lei texana sinaliza que Suprema Corte pode revogar Roe vs. Wade

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Brasília

A nova lei texana que impede o aborto depois de seis semanas de gravidez é um sinal de que os dias do direito à interrupção voluntária da gestação podem estar com dias contados em âmbito federal nos EUA.

Para Mary Ziegler, professora de direito na Florida State University e especialista em história da legislação reprodutiva no país, "qualquer um que esteja prestando atenção" vê que o caso Roe vs. Wade, um marco legal que estabeleceu em 1973 o direito ao aborto legal nos EUA, está ameaçado.

Em outubro, a Suprema Corte deve começar a analisar um processo que pode reverter o entendimento.

Ativistas favoráveis ao direito ao aborto durante protesto em frente à sede do legislativo do Texas, em Austin
Ativistas favoráveis ao direito ao aborto durante protesto em frente à sede do legislativo do Texas, em Austin - Jordan Vonderhaar - 11.set.21/Getty Images/AFP

"O que pode ficar de lição é que decisões judiciais são menos sólidas do que parecem", afirmou ela à Folha. "O Judiciário tem um poder limitado para acabar com o debate sobre o aborto".

O que a “lei do batimento cardíaco” significa para o direito ao aborto legal no Texas e nos EUA em geral? No Texas, significa basicamente que, pelo menos no momento, não há aborto legal. A lei permite o procedimento antes de que haja batimentos cardíacos, o que acontece no máximo por volta de duas semanas depois que a menstruação atrasa.

Para todos os efeitos, é impossível fazer um aborto no estado, porque a maior parte das clínicas já disse que não vai oferecê-lo, por medo dos processos que a lei autoriza. Obviamente não é uma lei que anula Roe vs. Wade, mas sinaliza que a Suprema Corte não vê o aborto como um direito pleno. E que o entendimento pode ser revertido neste ano ou no ano que vem.

A Suprema Corte não decidiu se a lei é ou não inconstitucional, ela não analisou o caso. Por quê? A Suprema Corte disse que, nesse ponto da ação, não conseguia identificar alguém que pudesse ser processado para desafiar a constitucionalidade da lei no tribunal. Ou seja, não disse se é constitucional ou não, mas que os serviços de aborto legal não tinham ainda como trazer o caso para um tribunal federal.

Outros estados devem se inspirar no Texas? Sim. Há sete ou oito estados, incluindo a Flórida, que já disseram que vão adotar uma lei semelhante.

A professora da Florida State University Mary Ziegler, especialista em direito, história e política de reprodução, saúde e conservadorismo nos EUA
A professora da Florida State University Mary Ziegler, especialista em direito, história e política de reprodução, saúde e conservadorismo nos EUA - Bill Lax/Divulgação

Um dos principais mecanismos da lei é o de que o governo não está encarregado de impô-la, mas os cidadãos. Como isso funciona? Existe precedente? Não há precedente. Na maior parte dos casos, quando existem restrições ao aborto, como as que você vê em outras partes do mundo, existe essencialmente uma proibição criminal. Já no caso dessa lei, o Estado não está autorizado a impor a lei. Na verdade, ele é explicitamente proibido de fazer isso. Então, qualquer pessoa, que não precisa nem ser do Texas, pode processar os serviços de aborto legal e pedir até US$ 10 mil se qualquer pessoa fizer um aborto depois de seis semanas. Qualquer pessoa que ajude a realizar um aborto também pode ser processada.

Para aqueles que fizeram a lei, isso é positivo por duas razões. Primeiro, porque é difícil o Estado saber de todos os abortos que acontecem, e essa regra dá incentivo financeiro para que as pessoas denunciem seus vizinhos. Segundo, porque torna praticamente impossível contestar a lei no Judiciário, porque nos EUA existem dificuldades para processar um governo, e você não pode fazer uma contestação de constitucionalidade contra um cidadão comum. Você podia processar o agente do governo impondo a lei, mas no caso do Texas a lei especifica que nenhum agente pode fazer isso, então não tem quem processar. E aí, mesmo que a lei seja inconstitucional, não há o que fazer.

Com base em que a pessoa pode processar os serviços que realizam abortos? Não precisa ter base em nada, só na lei nova. Você não tem que conhecer a pessoa. Não tem que ter sido prejudicado pelo procedimento. Só tem que saber que ela fez o aborto.

Ou seja, se você está andando na rua e escuta uma conversa sobre alguém ter feito um aborto, pode pedir milhares de dólares num processo? Basicamente, sim. A questão é que o Texas quer proibir o aborto sem que isso seja contestado. Não é assim que o sistema judicial normalmente funciona, em geral você tem que ter sido afetado para poder processar algo ou alguém. E o Texas está tentando reescrever essa regra.

Alguns ativistas a favor do direito ao aborto dizem que não é uma questão de “se”, mas de “quando” o entendimento de Roe vs. Wade será revogado. Qual é a sua percepção? Nunca é possível dizer com certeza, porque já estivemos errados sobre isso antes. Mas qualquer um que esteja prestando atenção vê que é mais provável que seja um “quando”, não um “se”. E isso vai significar que imediatamente mais ou menos metade dos estados vai banir a maior parte ou todos os abortos legais. E aí o movimento contra o aborto vai tentar acabar com todos os procedimentos, porque esse é o objetivo deles. Se você acredita que o aborto é assassinato, não acha que está tudo bem acontecer em alguns estados. Nós já vimos argumentos nesse sentido na Suprema Corte, e isso vai ser acelerado se Roe vs. Wade for revogado.

Algumas pesquisas apontam que o ano de 2021 foi o pior para o direito ao aborto nos EUA desde 1973. Segundo o Instituto Guttmacher, entraram em vigor 561 restrições ao procedimento. Por que essa escalada? Tem a ver com a composição da Suprema Corte e com o funcionamento do Partido Republicano. No primeiro caso, a corte tem três novos membros que foram colocados lá por Donald Trump, e muitos estados acham que isso será suficiente para acabar com Roe vs. Wade. Então eles estão passando leis que querem ver em vigor. E o Partido Republicano tem se baseado cada vez mais numa estratégia de aumentar o comparecimento eleitoral. Então, em vez de apelar para o eleitor médio, há uma tentativa de energizar a base ideológica. E isso significa mais disposição de passar leis que são controversas, mas que apelam para esses eleitores.

Quais são os estados com leis mais restritivas? E os com menos? Os lugares mais liberais tendem a ser os estados progressistas, como Califórnia, Nova York e Massachusetts. E os mais restritivos são conservadores como Alabama e Mississippi. Estados como Texas e Flórida [terem legislação mais restritiva] é uma virada de jogo, porque têm populações maiores, mais diversas politicamente, e podem levar junto outros estados-pêndulo [que ora votam em democratas, ora em republicanos].

A Argentina legalizou o aborto em 2020, o México o descriminalizou agora em setembro. Por que os EUA parecem estar indo na contramão? O que pode ficar de lição disso para países como México é que mudanças por meio de decisões judiciais podem ser menos sólidas do que parecem. E o outro lado disso é justamente que, se os EUA estão indo na direção oposta agora, isso não será permanente também.

Tribunais têm poder limitado para acabar com o debate sobre o aborto. Eles fazem a diferença, mas não é como se depois que eles decidem o resto das pessoas fala “ah, ok, acabou” e vão para casa.


Raio-x

Mary Ziegler, 39

Professora de direito da Florida State University, é formada pela Universidade Harvard e especialista em legislação reprodutiva. É autora de "Abortion and the Law in America" e outros livros sobre Roe vs. Wade e a história do direito ao aborto nos Estados Unidos.

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