Descrição de chapéu 11 de setembro terrorismo

Pandemia de Covid deve deixar 11 de Setembro para trás na história

Acadêmicos apontam impactos extensos de atentados, mas não suficientes para definir 'nova era'

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São Paulo

Em artigo publicado em abril de 2020, Ben Rhodes, ex-assessor de segurança nacional de Barack Obama, argumentava na revista The Atlantic que a era do 11 de Setembro havia, enfim, acabado.

O ponto final, escrevia o cientista político, era a recém-declarada pandemia de Covid —cujo impacto na sociedade ainda era pouco claro. Outros fatores, porém, haviam concorrido para isso, sobretudo a possibilidade de a população e a classe política americana conseguirem enxergar, do retrovisor, erros cometidos devido ao estado de alerta de guerra constante.

O argumento de Rhodes, que tinha 24 anos na época dos maiores ataques terroristas em solo americano, soa quase como súplica vindo de quem entremeou sua trajetória aos desdobramentos dos atentados, como tantos em sua geração: sair de 12 setembro de 2001, o dia seguinte ao qual a política americana ficou presa por quase 20 anos, tornou-se necessário.

Juntar dois eventos cataclísmicos na mesma ideia de era se inclina mais ao imediatismo do jornalismo e da política do que à diligência da história.

Uma era pode começar e se encerrar em 20 anos, como sugere o artigo? E, se sim, o 11 de Setembro e suas ondas sísmicas na geopolítica teriam sido um soluço, refreado por uma nova ascensão de nacionalismos e populismos? Ou o suspiro mais longo de um moribundo século 20, que, diferentemente do que argumentou Eric Hobsbawm (1917-2012), não teria acabado com o fim da Guerra Fria, em 1991?

“Os séculos mudam quando questões fundamentais para aquele século anterior são de fato transformadas”, diz a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz, evocando o britânico Hobsbawm. Também ela, nos primeiros meses da pandemia, lançou o ensaio “Quando acaba o Século 20” (Companhia das Letras), no qual capta com precoce precisão as mudanças por vir.

Para Schwarcz, esse ponto de inflexão na sociedade —no dia a dia das pessoas— só veio com a pandemia e a ruptura do que ela aponta como a grande marca do século 20, a ideia de que praticamente todas as barreiras podem ser transpostas pela engenhosidade humana. “E nada disso foi suficiente para dar conta de um microrganismo!”

Por isso, a professora de Princeton e da Universidade de São Paulo defende que “o nosso século só começará quando conseguirmos deixar a Covid para trás”: “[A pandemia] entrou na vida das pessoas como uma guerra mundial. Uma guerra mundial era o que se temia no 11 de Setembro, e isso não aconteceu”.

Mesmo fenômenos que ascenderam com os atentados, como a globalização do terrorismo, hoje podem ser lidos mais como um sintoma de seu tempo do que uma determinante —trata-se de um mundo de intenso trânsito de pessoas, mercadorias e ideias.

“O 11 de Setembro teve uma importância monumental, mas também penso que é uma história mais norte-americana, no sentido de os Estados Unidos serem o alvo”, afirma Schwarcz, contrastando com a globalidade da Covid, quando “não há país que escapou, não há tribo que escapou”.

O historiador norte-americano Alexander Keyssar, professor da Kennedy School of Government, de Harvard, enumera espasmos mais amplos dos atentados. Para começar, diz, há as duas guerras travadas como resposta: a do Afeganistão —iniciada em outubro daquele mesmo ano e encerrada, ao menos oficialmente, no mês passado —e a do Iraque (2003-2011).

“Além do impacto severo nas sociedades desses dois países e daqueles em volta deles, essas guerras contribuíram para uma imigração maciça para a Europa, o que acabou por mudar a política europeia ao fazer aflorar um nacionalismo anti-imigrantes”, pondera.

A geopolítica global, e não só a regional, foi rearranjada.

“O fato de os EUA estarem amarrados a essas guerras deu espaço para o crescimento da influência chinesa e, de forma ainda mais marcante, para um recrudescimento da influência russa, que estava à beira do colapso antes disso”, ressalta, citando o avanço de Vladimir Putin na Turquia, no Iraque e sobretudo
na Síria, ainda conflagrada.

Embora conteste os limites territoriais aos impactos do 11 de Setembro, Keyssar concorda que as transformações advindas dos atentados reverberaram por menos tempo do que reverberarão as da pandemia, com seu saldo de mortes que supera os 4,6 milhões.

“Para a próxima geração americana, o 11 de Setembro será um fato horrível, mas no passado”, diz. “Tivemos uma sucessão de crises tão grande que pessoas atentas têm mais com o que se preocupar do que algo ocorrido há 20 anos.”

Estudo publicado pelo Pew Research Center no início deste mês com base em várias séries de pesquisa de opinião pública corrobora o que Keyssar, Schwarcz e Rhodes dizem.

O impacto dos atentados no moral dos americanos foi tremendo. Dias após o episódio, 71% dos adultos se diziam deprimidos, e metade tinha dificuldades para se concentrar. Nove em dez declararam ao Pew ter sentido tristeza ao ver as imagens dos aviões entrando nas Torres Gêmeas pela TV, e similar proporção confessou ter raiva.

O medo também se tornou prevalente, com as respostas sobre o temor de um novo ataque mantendo-se altas mesmo um ano depois do ocorrido. “Terrorismo” foi uma das principais preocupações dos americanos nos dois ciclos eleitorais seguintes.

Outros sentimentos e percepções conjurados na época, no entanto, perderiam força em poucos anos: o patriotismo, a união da população apesar de divergências políticas, a confiança no presidente e nos políticos em geral —esta despencou do patamar de 60% para o de 30% em menos de cinco anos, afetada pela negligência do governo Bush com o furacão Katrina.

“Nos Estados Unidos, a era do 11 de Setembro só não acabou para as pessoas que combateram no Afeganistão e no Iraque e para suas famílias”, avalia Keyssar. Mesmo para estes, o efeito duradouro foi o oposto do que se via nos meses seguintes aos atentados, quando o apoio às guerras, sobretudo a de 2001, era alto.

“A maioria dos oficiais militares que recebemos como alunos aqui na Kennedy School se tornou antiguerra, cética da hierarquia militar e mesmo da Presidência.”

Embora seja cedo para determinar o impacto que a pandemia terá daqui a duas décadas em quem a viveu, os historiadores arriscam indícios.

Schwarcz vê o espelhamento do que houve no século 20 com a gripe espanhola, retratada por ela e Heloísa Starling em “A Bailarina da Morte” (Companhia das Letras, 2020).

“Em 1918, os cronistas silenciaram sobre a gripe espanhola, porque as pessoas queriam esquecer. O desassossego e a história que não fecha produzem muito silêncio. Os grandes relatos da espanhola foram feitos por quem era criança na época”, afirma, acrescentando que, a julgar por entrevistas recentes de escritores, os grandes relatos sobre a Covid serão escritos por quem é hoje criança ou adolescente.

Keyssar espera mudanças nas relações sociais, sobretudo nas de trabalho, para as classes mais abastadas. Com um enorme revés: isso deve ampliar as desigualdades.

“Acho provável que a maioria das pessoas que puderem vão passar a trabalhar em casa, ao menos parte do tempo. Claro que isso não se aplica ao operariado”, comenta, lembrando de empresas que convocaram funcionários no auge da pandemia e das maiores mortandade e taxa de hospitalização entre os pobres.

Carreiras foram repensadas; as relações sociais também estão sendo revistas. E, com uma geração que passou um ano ou mais fora da escola, conforme o país, as marcas da pandemia perdurarão.

“A gripe espanhola virou marcador de tempo”, ressalta Schwarcz. “As pessoas diziam muito ‘no tempo da espanhola era assim’. Quando isso acontece, é uma prova de que ele dividiu eras. Acho que as pessoas vão se referir a esse momento como antes da Covid e depois da Covid.”

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