Descrição de chapéu Governo Biden terrorismo

Patriotismo antidemocrático de direita tem elos com 11 de Setembro, defende historiador

Para John Bodnar, defesa de liberdades individuais aflorou após atentados e desaguou em atos como a invasão do Capitólio

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Washington

Uma onda de patriotismo tomou os EUA logo após os ataques do 11 de Setembro. Bandeiras americanas passaram a figurar com mais força nos jardins de casas, e diversos políticos exaltaram a união nacional como forma de superar a dor e o choque pelo atentado terrorista que matou quase 3.000 pessoas.

Em seguida, o então presidente George W. Bush usou o fervor nacionalista de tons religiosos para justificar a invasão do Afeganistão e lançar uma guerra ao terror, o que dividiu a onda patriótica em dois grupos: um considerava inquestionável a necessidade de partir para o confronto, sem se importar com as consequências, e outro condenava o uso do amor ao país como combustível para ataques no exterior.

Bandeira americana em placa com nomes de vítimas do memorial do 11 de Setembro, em Nova York
Bandeira americana em placa com nomes de vítimas do memorial do 11 de Setembro, em Nova York - Shannon Stapleton - 9.set.14/Reuters

Essas duas formas de patriotismo estão presentes até hoje nos EUA, afirma à Folha John Bodnar, historiador e autor de “Divided by Terror - American Patriotism after 9/11” (divididos pelo terror - patriotismo americano depois do 11/9, sem edição no Brasil). E uma delas é usada pela extrema direita para defender liberdades individuais em vez do bem coletivo, em um processo que tem gerado um patriotismo antidemocrático, focado no individualismo, que ameaça a existência do próprio governo.

Qual a situação do discurso patriótico hoje nos EUA? Está em crise, porque há uma versão de direita do patriotismo que é mais militarista e baseada na noção de liberdade individual. Não há nada errado com a liberdade individual, mas qualquer coisa pode ser ruim se levada ao extremo e, nesse caso, acaba gerando indiferença ao sofrimento dos outros. Vemos muitos movimentos surgindo no mundo, de patriotismos de extrema direita em torno de questões como migrações, genocídios, limpeza étnica etc.

Há duas correntes rivais de patriotismo que ganharam força após o 11 de Setembro, embora já existissem antes. Uma é a do tipo disposta a virar as costas para o bem de todos em troca de liberdade individual, e a outra é mais empática e busca promover uma nação concentrada em atingir o bem comum.

Como o senhor avalia o uso de símbolos nacionais por grupos de extrema direita? Há ameaças na medida em que eles são capazes de causar grande violência e danos. A extrema direita é mais perigosa hoje, porque tivemos, desde o 11/9, a vinda para o campo principal de políticos conservadores de direita, que são mais tolerantes com a extrema direita e menos dispostos a contestá-la. Assim, os valores da extrema direita já não estão mais tão distantes do que costumavam ser.

O historiador americano John Bodnar, autor do livro 'Divided by Terror - American Patriotism after 9/11'
O historiador americano John Bodnar, autor do livro 'Divided by Terror - American Patriotism after 9/11' - Divulgação Universidade de Indiana

[O ex-presidente] Donald Trump tentou buscar o apoio de grupos extremistas de direita e foi relutante ao tomar posição contra o ódio, o antissemitismo e o racismo. E também compartilhava com eles sentimentos antigoverno. Trump era a favor de buscar meios de não pagar impostos. E isso leva a ideias como as de que o governo não merece receber recursos ou que vai tirar sua liberdade individual. É um patriotismo antigoverno e antidemocrático. No extremo, seria fascismo.

Que outras ameaças isso gera? Há um grande movimento político que mimetiza algumas atitudes e visões da extrema direita, o que faz com que haja uma ameaça antidemocrática, como na invasão do Capitólio, e com que as pessoas se tornem mais tolerantes ao racismo e ao sexismo. O governo do Texas acaba de tirar o direito ao aborto das mulheres, por exemplo.

Vejo a extrema direita se infiltrando de uma forma que tornará as atitudes antidemocráticas mais persistentes na política americana. Elas parecem mais focadas em não querer que ninguém diga a elas o que fazer em vez de pensar num governo para todas as pessoas.

Como a retirada do Afeganistão impactou o patriotismo nos EUA? Uma parte da população não está confortável com a ideia de que não houve vitória. De muitas formas, o patriotismo nas guerras está ligado à vitória, não a uma retirada. Um bom número de veteranos está incomodado, não só porque não houve nada para mostrar pelos seus anos de serviço e sacrifício, mas porque não fomos capazes de resgatar milhares de afegãos que trabalharam com os militares americanos lá. Ouvir que veteranos estão tentando agir por conta própria para tentar resgatá-los me lembrou da ideia de companheirismo.

Mas estamos vendo no momento um patriotismo baseado principalmente no forte senso de companheirismo que eles sentem entre si, o que é compreensível. Não estou tão certo de que seja um patriotismo baseado em algum dos grandes ideais da cultura política americana.

Por exemplo, em um dos discursos mais famosos da história americana, [o ex-presidente] Abraham Lincoln foi até o campo de batalha de Gettysburg, durante a Guerra Civil, e refletiu sobre por que todos aqueles homens tinham que morrer. Ele disse que nós podemos justificar o sacrifício deles ao continuar trabalhando para preservar um governo das pessoas, feito pelas pessoas e para as pessoas.

O argumento era que a nossa obrigação patriótica teria de ter raízes em um compromisso para construir uma sociedade melhor, mais democrática e tolerante. Mas o que estamos vendo agora é mais um patriotismo de companheirismo, não o que Lincoln tinha em mente quando falou de se sacrificar e morrer pelo país.

Após o 11/9, o patriotismo foi usado como forma de lidar com o trauma dos ataques. Mas na maior tragédia a atingir os EUA recentemente, a Covid, ele teve pouco espaço. Por quê? O patriotismo foi usado pela direita, mas como defesa da liberdade individual às custas do bem comum. Isso estava por trás da retórica de Trump de "não se preocupe com a vacina, em usar máscaras ou sobre as pessoas morrendo". O que Trump fez durante seu mandato foi basicamente apoiar as pessoas que não têm empatia. Ele era indiferente ao sentimento humano. Na pandemia, vemos o patriotismo de direita contestando o poder do governo em estados como Flórida e Texas, que agora sofrem com altas taxas de infecção.

As competições com China e Rússia poderão ser usadas para despertar o patriotismo nos EUA? Não parece haver um sentimento anti-China como houve um sentimento anticomunista nos anos 1950 e 1960. Apesar de o coronavírus aparentemente ter se originado na China, não vemos um sentimento maciço contra o país, como existe em parte da direita. No jornal da minha cidade natal, as cartas dos leitores falam muito em "vírus chinês", usam retórica da Guerra Fria. Mas isso não é muito penetrante. O mundo mudou, a globalização mudou as coisas, e os dois países precisam um do outro.


Raio-x

John Bodnar, 77
Professor emérito de história na Universidade de Indiana. Tem doutorado pela Universidade de Connecticut e escreveu nove livros sobre guerras, imigração e trabalho nos EUA.

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