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Restrição ao aborto nos EUA prova que força por trás de Trump segue viva

Apoio da Suprema Corte a manobra do Texas pode dar gás ao plano chavista de Biden para o tribunal

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São Paulo

O virtual banimento dos abortos no Texas, com apoio da Suprema Corte após cinco décadas de marco legal estabelecido no julgamento Roe vs. Wade, é um sinal eloquente da vitalidade da divisão da sociedade norte-americana.

Prova também que o racha criou Donald Trump, o bufão que presidiu o principal país do mundo por quatro anos, mais do que foi insuflado pelo ex-presidente.

Manifestantes contrários ao aborto durante discurso do ex-presidente dos EUA Donald Trump na Marcha para Vida, em Washington
Manifestantes contrários ao aborto durante discurso do ex-presidente dos EUA Donald Trump na Marcha para Vida, em Washington - Roberto Schmidt - 24.jan.20/AFP

Claro, o republicano era um conduíte de uma corrente política que remonta aos tempos da guerra cultural de Richard Nixon nos anos 1960 e 1970, passando pela emergência ultraconservadora do movimento Tea Party, e manipulava esses sentimentos de forma hábil.

Mas Trump era sintoma mais que causa, por mais que se esforçasse em encarnar o papel de herói do conservadorismo, para horror dos verdadeiros conservadores do seu país e deleite de clones imperfeitos alhures, como Jair Bolsonaro.

Quando foi derrotado por Joe Biden na eleição de 2020, até pelo seu comportamento golpista que desaguou no 6 de janeiro do Capitólio invadido, houve uma esperança entre os autodenominados progressistas que o inimigo havia sido contido.

Biden, afinal, capitalizara o fastio americano na reta final do mandato de Trump, alimentado pela sua condução errática do combate à pandemia.

O democrata, contudo, não teve uma vitória fácil, tendo virado votos decisivos ante uma massa enorme que divide o país em azul e vermelho, com sinais cromáticos inversos em relação ao que acontece no resto do mundo.

No poder, prometeu o que até Michel Temer havia prometido em 2016, pacificar o país. Está a léguas disso. Na sua política externa, manteve como seria previsível boa parte da rota trumpista, apenas burilando sua forma de interação com o mundo, mas quase nada do conteúdo: China e Afeganistão estão aí para exemplificar.

Em casa, a questão texana do aborto é altamente simbólica. Estados de extração mais conservadora sempre buscaram apertar restrições contra a prática, esbarrando em recursos feitos à Suprema Corte por entidades pró-aborto contra as autoridades.

Desta vez, o Senado texano usou um artifício novo. Primeiro, criou uma regra que inviabiliza o aborto após o coração do feto bater, algo como seis semanas. Com isso, talvez 85% das interrupções feitas no estado em 2020 teriam sido vetadas se a lei já valesse.

Nem gravidez provocada por estupro ou incesto é isenta da regra.

Mas o truque veio com o empoderamento individual para a aplicação da lei: a ação contra pessoas que ajudam mulheres a abortar fora dos parâmetros draconianos colocados deve ser feita por pessoas físicas ou entidades de direito privado, não pelo Estado.

Se ganhar a causa, o acusador ainda leva US$ 10 mil para casa, além de custos processuais. Se perder, fica por isso.

Dessa forma, sem autoridades envolvidas, tudo deve ocorrer no nível da Justiça estadual, e não em cortes federais que são obrigadas a seguir a decisão Roe vs. Wade, de 1973.

A Suprema Corte foi instada a se manifestar e decidiu não interferir na decisão texana, por 5 votos a 4. Como já aconteceu antes, seu presidente, o conservador John Roberts, votou com os três juízes progressistas indicados por presidentes democratas.

Em um sinal trocado com o debate no Brasil, onde o presidente trumpista é crítico da Suprema Corte, Biden queixou-se da decisão —mas nem por isso sugere protestos públicos, como Bolsonaro faz mirando o 7 de Setembro.

Além de ver iniciativas no Congresso contra a decisão, o democrata pode reviver uma ideia que ventilou nos estertores do governo Trump, quando o republicano indicou uma conservadora para o tribunal após a morte de Ruth Bader Ginsburg, ícone dos liberais.

Primeiro, o Partido Democrata tentou impedir a indicação, alegando que Trump não poderia fazer isso a oito dias da eleição.

Depois, foi ventilada a hipótese de que Biden poderia ampliar a composição da Suprema Corte, hoje com nove integrantes, de forma a amainar o peso da maioria de seis juízes conservadores que vai se manter até alguns deles morrerem ou decidirem se aposentar.

No poder, Biden criou uma comissão para analisar o tema e, nesta quinta (2), sua porta-voz disse que ele "não mudou de ideia" acerca da ampliação.

Na América do Sul, dois líderes adotaram tal visão: o esquerdista Hugo Chávez, que levou o plano a cabo na Venezuela em 2003, e o então candidato a presidente Bolsonaro em 2018 —que por ora prefere apresentar pedidos de impeachment de ministros da corte.

Isso mostra que embates entre Poderes ocorrem sob quaisquer colorações ideológicas. No caso específico americano, a traquinagem jurídica do Texas tende a ser reproduzida por estados conservadores governados por republicanos, provando que a guerra cultural está viva e passa bem nos EUA de Biden.

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