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Constituinte do Chile chega a poucos acordos após cem dias

Crise política e proximidade das eleições deixam Assembleia sem suporte

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Buenos Aires

A Assembleia Constituinte chilena chega, nesta semana, a seus cem dias de funcionamento tendo alcançado, com dificuldades, os acordos essenciais para definir seu funcionamento interno. A redação em si das leis, que tem prazo para ser encerrada, está atrasada. São nove meses desde o início dos trabalhos, em 4 de julho, renováveis por mais três.

A nova Carta surgida dos trabalhos terá de passar por um plebiscito vinculante, ou seja, terá de ter a aprovação popular. Caso contrário, a atual Constituição, redigida na época da ditadura, continuará vigente.

Policiais detêm manifestantes durante protesto em Santiago
Policiais detêm manifestantes durante protesto em Santiago - Ivan Alvarado - 10.out.21/Reuters

A demora em estabelecer o regimento ocorre justamente quando o país começa a viver uma nova crise política. O presidente Sebastián Piñera —investigado pela Procuradoria por conta de sua suposta relação com a venda de uma mineradora por meio de um paraíso fiscal, enquanto estava em sua primeira gestão (2010-2014)— voltou a ser questionado pelas ruas.

Santiago tem vivido protestos antigoverno desde a revelação dos Pandora Papers, investigação jornalística que trouxe a denúncia. No último domingo (10), uma mulher morreu no enfrentamento com um grupo de carabineiros, a polícia chilena.

O bloco opositor a Piñera no Congresso defende votar um início de julgamento político do presidente já nesta quarta-feira (13). Se isso ocorrer, há mais chances de ser aprovado na Câmara de Deputados, mas será difícil passar no Senado, devido à composição política da Casa.

Para o cientista político Guillermo Holzmann, da Universidade de Valparaíso, a crise do governo Piñera, mais a aproximação das eleições presidenciais e legislativas, deixa a Constituinte sem apoio institucional necessário. "É preciso observar como vão navegar sem respaldos e diálogos claros com o Executivo, que entra em sua fase final muito desgastado [Piñera tem apenas 20% da popularidade], e com o Congresso, que já está de olho na configuração que terá depois das eleições", afirma.

O principal tema de discórdia até aqui foi a regra de que, para um artigo ser aprovado, seriam necessários 2/3 de aprovação de todos os legisladores. Como a Assembleia é fragmentada e abriga diversas correntes de pensamento, chegar a esses dois terços para cada artigo será muito difícil.

O órgão, paritário em relação a gênero e de 155 vagas, é hoje composto por 24% dos integrantes da direita, 35% da centro-direita e 42% de independentes, mais 17 vagas para povos indígenas.

"Como é que nós, indígenas, que temos apenas 17 vagas, podemos fazer com que uma ideia nossa seja aprovada? Nosso papel fica sendo apenas o de assistir ou de, com sorte, poder vetar algo de que não gostamos", disse Eric Chinga, líder indígena que representa o povo Diaguita. "Os povos indígenas sempre rejeitaram a necessidade dos 2/3".

O debate se estendeu por semanas, uma vez que essa regra já existia desde a formulação da Assembleia. A esquerda ficou dividida, e parte dela quis votar com os indígenas. A direita não abriu mão dos dois terços. Por fim, o órgão referendou a norma. Porém, estabeleceu-se também que os artigos que não tiverem dois terços deverão ser levados à população geral para "desempate", em forma de plebiscito.

Quanto a esse mecanismo de desempate, votaram 107 a favor, 42 contra, e 4 se abstiveram. "Não há embasamento na atual legislação para isso. O Congresso terá de aprovar uma mudança na atual lei para incluir a possibilidade desse plebiscito", diz Hollzmann.

A Assembleia realizou algumas outras votações nos últimos dias. Por 137 votos a favor, 3 contra e 9 abstenções, decidiu que a Constituição incluirá uma explicação sobre o "contexto de emergência climática", e todos os debates devem levar em conta o fator da sustentabilidade.

Numa outra votação, impulsionada pela líder da Assembleia, a professora universitária de origem mapuche Elisa Loncón, ficaram estabelecidas uma definição e uma punição para o negacionismo tanto dos abusos de direitos humanos durante a ditadura militar (1973-1990) como da repressão aos povos mapuche nos últimos anos e aos jovens que foram protestar nas ruas a partir de outubro de 2019.

"Negacionismo será toda ação ou omissão que justifique, minimize ou negue as atrocidades e o genocídio cultural de que foram vítimas os povos originários e o afrodescentente, durante a colonização europeia e a partir da constituição do Estado do Chile", diz o texto. A punição dentro da Convenção inclui suspensões e advertências públicas.

A legisladora Constanza Hube, de direita, afirmou que o regulamento "tem coisas muito totalitárias". "Nem na ditadura se viram regulamentos como este. Nós não podemos nos transformar num tribunal", afirmou.

Defendido por Loncón desde o primeiro dia da Assembleia como "necessidade de reparar a relação dos chilenos", a norma também é vista como exagero pela legisladora governista Katherine Montealegre, para a qual se trata de "censura aos que pensem de modo diferente ao da esquerda".

A próxima data na agenda da Constituinte agora é a do próximo dia 18, quando começam a funcionar as comissões temáticas que vão redigir o conjunto de leis por áreas.

Enquanto isso, Piñera tentará se desvencilhar da possibilidade de um julgamento político. Sua defesa alega que não pode ser julgado nessa instância por duas razões. Primeiro, a irregularidade teria ocorrido em seu primeiro mandato, e os processos de impeachment, no Chile, só podem dizer respeito ao atual mandato. Segundo, que já houve uma investigação desse caso no passado, com menos evidências do que as agora lançadas pelos Pandora Papers, na qual o presidente saiu absolvido.

A oposição argumenta que, ainda assim, o caso Dominga é mais um dos que deixam o Chile em posição vulnerável, assim como as demais acusações de tráfico de influência que Piñera recebeu ao longo dos anos. Um dos homens mais ricos do Chile, com uma fortuna avaliada em US$ 3 bilhões, o mandatário sempre teve dificuldades em separar sua atuação pública da empresarial.

Foi apenas depois de muita pressão política que ele se desfez da maioria (não todas) das ações de empresas das quais era sócio majoritário, como a companhia aérea Lan (atual Latam), a associação Blanco y Negro (dona do clube de futebol Colo-Colo) e a TV Chilevisión.

Outro caso que o desgastou foi a compra de ações de uma companhia pesqueira peruana durante seu governo, justamente quando o Chile disputava na Corte de Haia um território marítimo em que a empresa atuava. Embora o benefício e o conflito de interesses tivessem ficado claros, Piñera foi absolvido.

Para o advogado constitucionalista Javier Couso, a possibilidade de que um impeachment avance a pouco mais de um mês das eleições é difícil, mas preocupante. "Ainda que passe na Câmara, será vetada no Senado, onde a oposição não tem votos. Mas será algo simbolicamente forte, algo como ocorreu com Trump, uma desmoralização ao fim do mandato. Para ele, seria uma humilhação, um desastre."

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