Escola criada pela ditadura em Portugal reuniu líderes de movimentos de libertação da África

Casa dos Estudantes do Império, por onde passaram Amílcar Cabral e Marcelino dos Santos, foi 'dor de cabeça' para o regime

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Cláudia Castelo

Historiadora, doutora em ciências sociais pela Universidade de Lisboa e pesquisadora no Instituto de Ciências Sociais da mesma instituição.

Público

Até ao início da década de 1960, não havia estabelecimentos de ensino superior nas colônias portuguesas, e o ensino secundário estava irregularmente disseminado.

Por isso, jovens —majoritariamente do sexo masculino— dos vários territórios coloniais rumavam para Portugal para frequentar os cursos universitários.

Uma parte significativa desses estudantes era descendente de portugueses radicados na África, outra parte era constituída por africanos (de Angola, Cabo Verde, Guiné, Moçambique e São Tomé e Príncipe), indianos (de Goa, Damão e Diu) e macaenses.

Para atenuar o sentimento de estranheza e desenraizamento, nos primeiros anos da década de 1940 surgiram por iniciativa dos estudantes agrupamentos em função da proveniência.

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Alunos na Casa dos Estudantes do Império, em ano desconhecido - Divulgação/União das Cidades de Língua Portuguesa

Do ponto de vista do Estado Novo português, ditadura nacionalista e colonialista, essa dispersão contrariava a tão apregoada unidade nacional. Isso mesmo foi transmitido aos estudantes por Marcelo Caetano, comissário nacional da Mocidade Portuguesa, presidente de honra da Casa de Estudantes de Angola, e ditaria a união de todos os estudantes numa só agremiação.

Em 3 de julho de 1944, o ministro das Colônias, Francisco Vieira Machado, visitou a Casa dos Estudantes de Angola, para conhecer os corpos gerentes da Casa dos Estudantes do Império (CEI), já então em organização. O governo esperava que a CEI fosse um espaço de formação de elites coloniais apostadas na defesa da missão histórica de Portugal de possuir, colonizar e civilizar os domínios ultramarinos.

A nova associação, presidida por Alberto Marques Mano de Mesquita —estudante de direito, proveniente de Angola, sobrinho do respectivo governador—, iniciou funções em 1º de outubro e, no mês seguinte, instalou-se na Avenida Duque d’Ávila, em Lisboa. Na sede havia salão de festas, sala de jogos, bar —só em 1948 seria fundada a cantina—, biblioteca, gabinetes e sala de trabalho dos corpos gerentes.

O lar se situava em outra casa (inicialmente na rua Carlos J. Barreiros, n.º 28). A delegação de Coimbra começou a funcionar em dezembro de 1944 na rua Aires de Campos. A Casa se dividia em seções que agrupavam os associados por território de origem com direções próprias, sob uma direção geral comum. A sua atividade incluía, além da assistência social aos associados, as vertentes cultural e desportiva.

Embora o grupo fundador fosse conservador, desde cedo a CEI acolheu jovens com perspectivas progressistas e começou a se afastar dos propósitos que a haviam legitimado perante o poder político e justificavam os apoios financeiros dos governos, autarquias locais e empresas coloniais.

Na assembleia-geral extraordinária de sócios realizada no Liceu Camões em junho de 1945, a opção pela via democrática interna vingou e continuaria a ser preconizada pelos estudantes nos 20 anos seguintes.

Quase todos os elementos que integravam os corpos gerentes da CEI para o ano letivo 1945/1946, tanto em Lisboa como em Coimbra, assinaram as listas de adesão ao MUD (Movimento de Unidade Democrática, organização política de oposição à ditadura salazarista) e, pouco depois, juntaram-se ao MUD Juvenil. Em 1948 e 1949, os estudantes que dirigiam a CEI apareceram ao lado da oposição, a favor da candidatura de Norton de Matos à Presidência da República.

O pensamento colonial de Norton não constituiu nesta fase um empecilho para que o jovem angolano Agostinho Neto, que estudava medicina em Coimbra, apelasse ao voto no candidato que defendia a democracia. Em meados de 1950, os elementos da seção da Índia recusaram-se a subscrever uma declaração de repúdio pelas afirmações de Nerhu hostis à política portuguesa na Índia.

Desde 1948, a CEI publicava um boletim que, na sua diversidade, abordou situações iníquas vividas em cada território do império português e formas de as superar, tantas vezes articulando nacionalismo e humanismo.

A direção eleita para o ano letivo 1951/52 contava com o estudante de agronomia nascido na Guiné Amílcar Cabral como vice-presidente, e entre os associados encontramos Mário Pinto de Andrade e Marcelino dos Santos, três futuros fundadores de movimentos anticoloniais da Guiné e Cabo Verde, Angola e Moçambique, respectivamente.

A “casa comum”, como lhe chamou mais tarde o escritor Orlando da Costa, tornou-se em pouco tempo um espaço de debate de ideias, consciencialização cultural e política. Esse fato não escapou à Pide (máquina repressiva do Estado Novo) que, desde 1946, a manteve sob vigilância, nem ao Comissariado Nacional da Mocidade Portuguesa, alarmado com as evidências de que a Casa estava traindo os fins para que fora criada. O ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, discutiu o problema com Salazar.

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Cultura era parte central do cotidiano na Casa dos Estudantes do Império - Divulgação/União das Cidades de Língua Portuguesa

A subversão daquilo que o regime esperava da Casa determinou que lhe fosse imposta uma comissão administrativa a 30 de maio de 1952, por decisão conjunta dos ministérios da Educação Nacional e do Ultramar. A delegação da Pide e o comando distrital da Legião Portuguesa em Coimbra já vinham denunciando a ligação dos corpos gerentes da CEI local à oposição, ao MUD Juvenil, ao PCP, e concretamente a Joaquim Namorado, e a colaboração com o Ateneu de Coimbra, “agremiação essencialmente comunista da juventude operária”.

A comissão administrativa só seria exonerada em 25 de janeiro de 1957. Pelos nossos estatutos, a CEI deixava de se organizar em seções, consideradas pelo regime possíveis focos de separatismo, e assumia o compromisso de não interferir em assuntos de caráter político ou religioso. Com a retomada da gestão democrática da associação, a CEI conheceu uma fase de intensa e renovada atividade, em que se destacaram as iniciativas dos departamentos cultural e editorial.

Demarcando-se da cultura colonial, em estreito diálogo com movimentos culturais que existiam nas colônias, graças à intermediação nomeadamente dos marítimos (associados no Clube Marítimo Africano), mas também com movimentos além-fronteiras, a CEI promoveu expressões literárias novas e autônomas, que dariam corpo às literaturas africanas em língua portuguesa.

A consciência anticolonial e o nacionalismo africano tiveram tradução primordial em textos literários (poesia e prosa) publicados no boletim Mensagem, na coleção “Autores ultramarinos”, nas antologias de poetas angolanos, moçambicanos e de São Tomé e Príncipe. As atividades culturais e recreativas, dos colóquios aos saraus musicais, dos bailes à prática desportiva, encobriam a circulação de ideias e textos anticoloniais e de informações sobre movimentos independentistas, entretanto, criados nas colônias e no estrangeiro.

Na sequência do aparecimento de um manifesto intitulado “Mensagem ao Povo Português” elaborado pela delegação da CEI em Coimbra, que apoiava as acusações feitas na ONU contra a política colonial portuguesa, denunciava o trabalho forçado, a fome, a repressão, a falta de investimento na educação dos africanos, e defendia o imediato reconhecimento do direito dos povos das colônias à autodeterminação, em 30 de dezembro de 1960 foi novamente imposta uma comissão administrativa à CEI.

Uma desavença entre a sede e a delegação de Coimbra sobre distribuição de verbas serviu de justificativa oficial para a medida. Em fevereiro e março de 1961 começou a sublevação contra o domínio português em Angola. A retoma da gestão democrática da CEI, em 29 de julho, aconteceu pouco depois da saída clandestina de Portugal de cerca de seis dezenas de jovens homens e mulheres —entre eles muitos associados da CEI— que iriam colaborar com as lutas de independência, no exílio e na guerrilha. A Pide, que só teve conhecimento da fuga a posteriori, viria a considerar que a CEI em Lisboa tinha funcionado com o principal centro recrutador.

Nos anos seguintes, o governo enveredou por uma estratégia que visava acabar com a CEI, sem o ônus de uma extinção formal cujas repercussões temia. Criou a Procuradoria dos Estudantes Ultramarinos, que assumiu as funções de assistência e enquadramento dos jovens do Ultramar que vinham estudar para a metrópole, montou um “cerco econômico” à CEI e redobrou a vigilância e perseguição aos seus corpos gerentes. Estes não se deixaram intimidar e, até ao fim, tomaram posições corajosas ante o aparelho político-repressivo do Estado Novo.

Denunciaram o estrangulamento financeiro a que o governo submeteu a associação, as investidas da polícia política —buscas, apreensões de documentos e detenções de associados— e a obstrução à realização de atividades programadas.

No início de 1965, um colóquio sob orientação de Magalhães Godinho foi proibido com intervenção da PSP (Polícia de Segurança Pública), por determinação do Ministério da Educação Nacional. Num derradeiro comunicado, a CEI enquadra aquela proibição numa sistemática atitude de “negação da autonomia, alienação e adormecimento da personalidade do estudante ultramarino, em tentativa de subvalorização da sua consciência desperta.”

Em maio de 1965, o Grande Prêmio de Novelística da Sociedade Portuguesa de Escritores foi atribuído ao livro "Luuanda", de Luandino Vieira, preso no Tarrafal por ligações ao MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola). O autor já havia sido distinguido com o primeiro prêmio João Dias, da CEI, em 1962, pelos seus contos "Vidas Novas". A atribuição do prêmio SPE provocou uma violenta reação governamental e policial. Além de ter conduzido ao encerramento da SPE, pôs em evidência a promoção pela Casa das emergentes literaturas africanas, consideradas “subversivas” e “desnacionalizantes”.

Um detalhado relatório secreto sobre a CEI elaborado pelo Gabinete de Negócios Políticos para o ministro do Ultramar Silva Cunha reconhecia que a CEI fora desde cedo uma “dor de cabeça” para o regime e as tentativas para a controlar haviam sido infrutíferas. Por decisão conjunta dos Ministérios do Ultramar, Educação Nacional e Interior, em 6 de setembro de 1965 se consumou o sempre adiado encerramento da CEI.

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Fachada da Casa dos Estudantes do Império - Divulgação/União das Cidades de Língua Portuguesa

A Casa não foi uma entidade monolítica nem estática: entre os “rapazes da CEI” havia também mulheres, embora em muito menor número —em torno de 20%— e raramente em cargos diretivos; congregou jovens de diversas origens étnicas e geográficas —tendo em conta a naturalidade, nos primeiros lugares destacavam-se Angola e Portugal, seguidos por Moçambique, Cabo Verde, e por fim, Índia, Guiné, São Tomé e Príncipe e Macau—, condições socioeconómicas e diferentes posições políticas e convicções religiosas.

No entanto, a defesa da democracia e da autonomia foi uma constante dos corpos gerentes livremente eleitos. Não tendo sido o único, foi seguramente um dos espaços onde se imaginaram expressões culturais e políticas novas e autônomas e se forjaram cumplicidades com futuro.

A maioria da massa associativa da CEI não se posicionou contra a ditadura e o colonialismo, mas por ali passaram num período crucial das suas vidas, de formação pessoal e intelectual, líderes, militantes e simpatizantes dos movimentos de libertação que se iriam envolver na guerra contra o domínio português em Angola, Guiné e Moçambique. Uns quantos chegaram à antiga metrópole já cientes da iniquidade da exploração colonial e da mudança radical que se impunha. Outros iniciaram na CEI a “redescoberta da África”, a participação cívica e a militância nacionalista, desenvolvida posteriormente de diversas formas.

A CEI fez parte de uma história compartilhada de solidariedade anticolonial construída por jovens homens e mulheres a uma escala global. Como disse Óscar Monteiro, inspirando-se em Luís Bernardo Honwana (autor de "Nós matámos o cão tinhoso"), “a Casa foi, a despeito da sua pequenez, pouco mais do que uma esquina (...) um pequeno farol de juventude para um mundo novo”.

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