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Eutanásia volta ao debate na América Latina após caso de colombiana

Países como Chile, México e Argentina analisam projetos de lei em torno do direito à interrupção da vida

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Buenos Aires e São Paulo

Único país latino-americano em que a eutanásia está legalizada, a Colômbia vive dias de impasse depois da suspensão do procedimento que interromperia a vida de Martha Sepúlveda.

Aos 52, ela sofre de esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa que leva gradativamente à paralisia de todos os músculos e, em consequência, à morte. Enquanto a colombiana recorre da decisão, seu caso jogou luz sobre o debate em torno da legalização da prática em outros países da região.

A norma, que existe na Colômbia desde 1997 e está regulamentada há seis anos, estabelece que, para ter direito à eutanásia, o paciente deve ser terminal. Uma decisão de julho da Corte Constitucional, porém, ampliou o direito, passando a abranger pacientes que sofrem de enfermidades não curáveis, caso da ELA.

A psicóloga peruana Ana Estrada, que tem poliomielite desde os 12 anos, posa para fotos em sua casa em Lima; em fevereiro, um tribunal peruano ordenou que o governo respeitasse os desejos de Estrada de realizar a eutanásia - Angela Ponce - 25.fev.20/AFP

Em um país onde mais de 70% da população aprova o direito à interrupção da vida, de acordo com pesquisa do instituto Invamer, 157 colombianos já tiveram acesso à prática. Para tal, foram necessárias a anuência consciente do paciente e a aprovação de um médico.

Sepúlveda, que obteve a autorização para levar adiante o procedimento, deu entrevistas a veículos colombianos, nas quais apareceu sorridente e falante, contando como o recurso seria aplicado.

A postura não agradou setores contrários à eutanásia, e, após uma reunião de bispos católicos com funcionários do Ministério da Saúde colombiano, a decisão foi suspensa horas antes de ser concretizada. Sepúlveda agora recorre na Corte Constitucional e deve obter uma resposta em dez dias.

"O tabu é muito grande em sociedades com forte raiz religiosa. Mas, desde que a lei foi regulamentada, ocorreram mais de 150 procedimentos com normalidade, não houve uma corrida pela eutanásia", diz à Folha a advogada colombiana Adriana González. "Sempre penso que as coisas devem ser feitas de modo discreto, porque esse é um assunto muito delicado. O show midiático acabou prejudicando Sepúlveda."

Na primeira vez que o procedimento foi aplicado de modo legal na Colômbia, em 2015, González também teve de entrar com um recurso a uma decisão que suspendeu a eutanásia de seu cliente, Ovidio Gonzalez, então com 79 anos, que tinha um câncer de boca. No final, acabou cumprindo-se a vontade do paciente.

Nos demais países da América Latina, a prática é ilegal, mas há sinais de mudança. No México, há um projeto em análise no Congresso. No Chile, onde 72% da população aprova o recurso, a história de Cecilia Heyder, 52, que tem câncer, lúpus e sepse, chegou à Corte Suprema, e o caso comoveu deputados. Agora, a eutanásia no país depende do Senado —na Argentina também há uma proposta em andamento.

"Há uma crença equivocada de que, com uma lei de eutanásia, qualquer um pode ir ao médico e pedi-la, mas é aí que entram os regulamentos com os quais temos que trabalhar. Na Holanda, onde ela é legal, dois de cada três pedidos são recusados por não atenderem aos requisitos", diz o médico Carlos Soriano.

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A colombiana Martha Sepúlveda, 51 - Reprodução/TV Caracol

Para o também médico Carlos Javier Regazzoni, "a eutanásia é uma aberração, já que os profissionais estudam e fazem um juramento para ajudar os outros, não para aplicar a morte". "Assim, abre-se a porta para algo terrível, que é a eliminação de pessoas com doenças mentais, idosos. Com a pandemia de coronavírus, isso acabou sendo praticado em várias partes do mundo e deve ser evitado".

No Peru, onde a Igreja Católica tem forte influência sobre o Estado, um juiz determinou em março, de modo inédito, que a eutanásia fosse concedida a Ana Estrada, 44, que tem polimiosite, doença sem cura que causa debilidade muscular progressiva. O caso pode abrir um precedente, embora o presidente, o conservador de esquerda Pedro Castillo, diga que não permitirá a legalização da prática.

No Uruguai, há uma lei que despenaliza o suicídio assistido. Assim, quem ajuda uma pessoa a morrer por compaixão, em tese, não pode ser considerado criminoso. Mas a decisão depende da análise de cada juiz.

No Brasil, onde a eutanásia é ilegal, o caso de Sepúlveda também repercutiu. Para a bioeticista Luciana Dadalto, advogada especializada em direito médico e da saúde, o caso da colombiana "sobe um degrau" na discussão sobre morte digna na América Latina. Até então, o debate sobre o tema girava em torno de pessoas que sofrem de doenças terminais, com prognóstico de até seis meses de vida.

De acordo com Dadalto, a decisão da corte colombiana segue modelo que já existe em países como Suíça, Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Canadá. Recentemente, a Espanha também aprovou a eutanásia para doenças graves e incuráveis. Uma das condições é que a pessoa esteja capaz e consciente na hora de fazer o pedido por escrito. A lei poderia valer, inclusive, para pessoas que deixaram esse desejo registrado no testamento vital —uma declaração antecipada— e hoje estão incapazes de reafirmá-lo.

"O tema mexe muito com a gente, que tem uma cultura judaico-cristã muito forte. As entrevistas da Martha Sepúlveda mostram que, a princípio, ela é uma mulher funcional, o que causa espanto, porque mesmo as pessoas que aceitam a eutanásia enxergam essa possibilidade só para quem está moribundo."

Para o advogado Henderson Fürst, presidente da comissão de bioética e biodireito no Conselho Federal da OAB, a decisão da corte colombiana de incluir o sofrimento mental entre as hipóteses para a eutanásia foi surpreendente. "Abre um precedente para a depressão incurável, que ainda é um tabu mesmo onde há outras matrizes culturais. Há pouquíssimos casos de eutanásia para depressão no mundo."

Diferentemente de outros países, uma eventual discussão que avance sobre o direito à eutanásia nunca foi feita no Brasil. A prática é considerada crime de homicídio (artigo 121), com previsão de pena reduzida. O parágrafo 1º afirma que o agente que comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral —o que pode ser interpretado como visando cessar o sofrimento de determinado paciente, cujo estado de saúde é irreversível— poderá ter a pena reduzida de um sexto a um terço.

Para Dadalto, o Brasil não tem condições sociais de fazer esse debate. "O país ainda não oferece nem cuidados paliativos de forma universal aos seus doentes graves incuráveis", diz. "O risco é que as pessoas peçam para morrer porque não conseguem ter acesso a um tratamento que controle a dor delas."

Questões políticas, religiosas, morais e ideológicas também são entraves para que a discussão avance, segundo ela. "Em geral, a discussão e a legalização da eutanásia tem acontecido em países mais laicos do que o Brasil. Tem uma relação direta entre laicidade, países autonomistas, que respeitam diferentes projetos de vida. Estamos na contramão dessa história."

Para Fürst, no Brasil há uma máxima que perpassa sentimentos religiosos e até uma compreensão jurídica equivocada de que o princípio da vida está acima de toda e qualquer outra coisa. "Nessa compreensão a gente está falando de um dever de vida, não de um direito à vida, uma dignidade de vida."

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