Descrição de chapéu The New York Times

Gangues multiplicam poder no Haiti com vácuo de poder

Grupos controlam metade do país e operam como Estado paralelo, com direito a tribunais e delegacias

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Catherine Porter Natalie Kitroeff
The New York Times

Eles estupraram mulheres, incendiaram casas e mataram dezenas de pessoas, incluindo crianças, esquartejando os corpos com facões e jogando os restos aos porcos.

A medonha chacina ocorrida três anos atrás, considerada a pior em décadas no Haiti, foi mais do que obra de gangues rivais envolvidas numa disputa por território.

Foi organizada por altos funcionários haitianos que entregaram armas e veículos a membros das gangues para que punissem pessoas numa área pobre que protestavam contra a corrupção governamental, declarou o Departamento do Tesouro dos EUA no ano passado.

Membros da federação de gangues G9 protestam em Porto Príncipe contra assassinato do presidente do Haiti
Membros da federação de gangues G9 protestam em Porto Príncipe contra assassinato do presidente do Haiti - Victor Moriyama - 26.jul.21/The New York Times

Desde então, membros das gangues haitianas se fortaleceram tanto que hoje comandam trechos inteiros do país. O mais notório deles, um ex-policial chamado Jimmy Cherizier, mais conhecido como Barbecue (churrasco), apresenta-se como líder político. Concede entrevistas coletivas, lidera passeatas e nesta semana chegou a se colocar como substituto do primeiro-ministro na violenta capital do país.

No domingo (16), depois de gangues terem atirado contra um comboio do governo e acabado com a cerimônia oficial para marcar a morte do presidente fundador do país, o próprio Cherizier presidiu a cerimônia, vestindo terno branco com colete e deitando coroas de flores no local, cercado por câmeras e guardas mascarados armados com fuzis de assalto.

"As gangues exercem mais autoridade que os nossos líderes", disse Marie Yolène Gilles, diretora da Clear Eyes Foundation, organização local de defesa dos direitos humanos. "Se elas ordenarem ‘fiquem em casa’, você fica em casa. Se disserem ‘saia’, você sai. É o terror."

O sequestro de 17 integrantes de um grupo missionário americano no fim de semana, que teria sido obra de uma gangue rival chamada 400 Mawozo, deixou claro o poder crescente das quadrilhas no Haiti.

Os sequestradores exigiram US$ 17 milhões para libertar os reféns, que o líder da 400 Mawozo ameaçou matar se o resgate não for pago, segundo duas pessoas que estavam presentes quando a ameaça foi feita e captada numa gravação de vídeo. "Vou descarregar uma arma grande na cabeça de cada um deles", disse no vídeo o líder da gangue, Wilson Joseph.

Segundo algumas estimativas, as gangues hoje controlam mais de metade do Haiti e em alguns locais operam como governos "de facto", com seus próprios tribunais e "delegacias de polícia", cobrando taxas dos residentes para tudo, desde a eletricidade até autorizações escolares.

Não é de hoje que elas mandam em muitos bairros pobres, mas seu domínio cresceu desde que Jovenel Moïse foi empossado como presidente em 2017, dizem especialistas. A força desses grupos cresceu alimentada pelo enfraquecimento das instituições democráticas sob o governo Moïse e a utilização de gangues como ferramentas de opressão.

E, embora o governo americano e a ONU tenham consciência há muito tempo das ligações crescentes entre as quadrilhas, o governo e a polícia haitiana pouco fizeram para combater o problema, em parte por receio de abalar a pouca estabilidade existente no país, disseram atuais e antigos funcionários.

Esse arremedo de estabilidade desmoronou em julho, quando Moïse foi assassinado em seu quarto, num crime que ainda não foi elucidado e que expôs ainda mais as debilidades institucionais do país.

"O governo Moïse enfraqueceu a polícia e o sistema judiciário", disse Pierre Espérance, diretor-executivo da Rede Nacional Haitiana de Defesa dos Direitos Humanos. "Não havia controles no porto, na fronteira, no aeroporto. Armas e munições entram no país facilmente. E então o governo utilizou as gangues para massacrar o povo nas favelas."

Os ataques, disse ele, foram tentativas de conseguir controle político antes das eleições na região da capital, que representa 40% do eleitorado nacional. E boa parte desses eleitores vivem em favelas.

A organização de Espérance já documentou mais de uma dúzia de ataques armados de gangues desde 2018, resultando na morte ou no desaparecimento de mais de 600 pessoas. Em muitos casos essas denúncias citam a participação da polícia nas mortes, incluindo o envolvimento de policiais da ativa e o uso de equipamentos como veículos blindados ou gás lacrimogêneo.

Em pelo menos dois casos, a organização destacou o envolvimento de membros do governo de Moise.

Nenhuma das denúncias levou a prisões ou investigações sólidas, segundo Rosy Auguste Ducéna, diretora de programas da organização. E nenhum policial foi punido devido às denúncias de envolvimento nos crimes. "É por isso que dizemos que a violência hoje no Haiti é a violência do Estado", disse ela.

Um alto funcionário do governo do primeiro-ministro Ariel Henry, que foi escolhido por Moïse e assumiu o comando do Haiti em julho, disse que Henry não tem ligação com os abusos que o governo anterior teria facilitado. Pelo contrário, disse o funcionário, que não é autorizado a falar publicamente, Henry, que é médico, teria sido chamado para resolver a confusão no país e prometeu justiça pelos massacres passados e fazer todos os esforços possíveis para eliminar as gangues.

Estão no centro das acusações Cherizier e a aliança de nove gangues que ele lidera, conhecida como a coalizão Família e Aliados do G9. Mas o "arquiteto intelectual" do massacre de 2018 foi Joseph Pierre Richard Duplan, membro eleito do partido do presidente, que teria fornecido armas aos membros das gangues, segundo disse o Departamento do Tesouro em dezembro passado.

Segundo relatório da ONU, testemunhas descrevem ter visto Duplan repreendendo membros das gangues durante a chacina, dizendo "vocês mataram gente demais". "Não foi essa a ordem que receberam."

O diretor do Ministério do Interior, Fednel Monchéry, também teria tido envolvimento estreito com o massacre, disse o Departamento do Tesouro. No ano passado, o Departamento do Tesouro impôs sanções aos funcionários segundo os termos da Lei Magnitsky de responsabilidade por abusos de direitos humanos. Descreveu os acusados como "perpetradores de violações graves dos direitos humanos".

Mas a ação americana foi tomada após anos de apoio público contínuo a Moïse, a despeito dos avisos sérios de parlamentares americanos sobre seu governo cada vez mais autocrático. Tanto o governo americano quanto a ONU, cujo apoio é visto como essencial para qualquer presidente do Haiti, foram acusados de fazer vista grossa a denúncias reiteradas de infiltração das gangues no governo de Moise.

Um dos primeiros massacres de civis sob a Presidência de Moïse começou como operação contra gangues no bairro pobre de Grand Ravine. Em novembro de 2017, segundo inquérito interno do governo, policiais haitianos –incluindo Cherizier, que ainda integrava a polícia na época— invadiram uma escola à procura de um arsenal escondido. A operação acabou com oito civis mortos, incluindo um professor, um guarda de segurança e um candidato a aluno que teriam sido executados a sangue frio.

Policiais da Missão das Nações Unidas de Apoio à Justiça no Haiti, que estavam trabalhando com a polícia e ajudaram a planejar a operação, haviam ficado montando guarda do lado de fora da escola.

Semanas mais tarde, Susan D. Page, então chefe da missão da ONU no Haiti, divulgou comunicado altamente crítico pedindo que as autoridades haitianas investigassem "alegações de violações dos direitos humanos por unidades da Polícia Nacional Haitiana", entre as quais a operação fracassada.

Em protesto, o governo de Moïse chamou de volta seu embaixador junto à ONU. Já enfrentando críticas por ter desencadeado um surto devastador de cólera no país em 2010, a ONU afastou Page de seu posto.

A ONU retirou sua grande força de paz do país em 2017, deixando um legado prejudicado que incluiu a introdução da cólera no país pelos soldados da força de paz e acusações de que teriam abusado sexualmente e engravidado meninas de apenas 11 anos. A saída deixou uma força muito menor para apoiar a polícia, e essa força menor também deixou o país em 2019. Na ausência dela, o vácuo de segurança aumentou, especialmente nas áreas pobres da capital.

Após vários massacres envolvendo membros das quadrilhas e policiais, entre os quais Cherizier, mais de cem parlamentares americanos escreveram à administração Trump em 2019 para pedir a abertura de uma investigação sobre execuções extrajudiciais por parte de autoridades. Nada foi feito, segundo o deputado Andy Levin, co-presidente do Caucus do Haiti na Câmara dos Deputados.

"Eu esperava realmente que houvesse uma mudança de rumo quando o presidente Biden chegou ao poder", comentou Levin. "Ainda estou aguardando."

Os haitianos na capital convivem com o medo contínuo. Os sequestros dispararam, superando de longe o recorde do ano passado, que por sua vez já era muito mais alto que o do ano anterior, segundo a ONU.

"Estamos falando disso hoje porque são missionários americanos sequestrados", disse Ducéna. "Na nossa realidade, isso faz parte do nosso cotidiano. Todo dia saímos de casa sem saber se vamos voltar."

Tradução de Clara Allain

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