Guiné Equatorial é estranha no ninho da lusofonia, e integração ocorre lentamente

País de colonização espanhola tem só uma ilha que fala dialeto parecido com português

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São Paulo

Entre os nove integrantes da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), a Guiné Equatorial é uma estranha no ninho.

Ex-colônia espanhola, tem laços frágeis com a lusofonia, e encontrar alguém que fale português fluentemente é tarefa árdua. Mesmo assim, sua entrada na entidade foi aprovada em 2014, com apoio do Brasil, apesar das críticas levantadas à época em razão do histórico de desrespeito aos direitos humanos.

Porto de Malabo, capital da Guiné Equatorial, país africano que tenta reforçar seus laços com a lusofonia - Jornal Mundo Lusíada

O país do oeste africano, formado por uma parte insular, onde fica a capital, Malabo, e outra continental, é comandado pelo ditador Teodoro Obiang desde 1979.

Com 1,4 milhão de habitantes, não conta com instituições independentes e tem a oposição sob constante ameaça do governo, em parte exilada. É um dos países com menor nota no índice anual da ONG especializada em liberdade política Freedom House, com pontuação de apenas 5 numa escala de 0 a 100.

Também registra rumorosos casos de corrupção. Em 2019, 25 carros de luxo de um dos filhos do ditador foram apreendidos pela Suíça e leiloados como parte de uma investigação por lavagem de dinheiro.

Desde que ingressou na CPLP, a Guiné Equatorial tem prometido reforçar sua ligação com o mundo que fala português. Até aqui, no entanto, as iniciativas oficiais têm sido esparsas, mais centradas na tentativa de obter apoio diplomático e participação em fóruns empresariais. Atualmente, o idioma é dominado por cerca de 1% dos habitantes.

Na realidade, a grande maioria nem fala o português propriamente dito, mas uma língua aparentada, praticamente restrita à pequena ilha de Annobón (também chamada de Ano Bom), uma das que compõem o país.

Colonizada por exploradores portugueses no final do século 15 e cedida aos espanhóis por um tratado entre as duas coroas em 1778, a ilhota é a própria definição de isolamento.

Com cerca de 5.000 habitantes, tem mais proximidade e ligação cultural com a lusófona São Tomé do que com Malabo, a 700 km de distância. Annobón tem apenas 17 km², o tamanho do bairro paulistano de Santo Amaro. Mesmo assim, serve como justificativa para a presença do país na CPLP.

O distanciamento tornou o território menos suscetível à influência espanhola e deu origem a um idioma peculiar, o fá d’ambô, contração de “falar de Ano Bom”. Reúne palavras do português arcaico misturadas a algumas oriundas do espanhol e outras trazidas por escravizados nascidos na África continental.

A sopa linguística, fermentada ao longo de séculos, produziu resultados curiosos. Obrigado é "deuspagá" (de "Deus lhe pague"), professor é "mést scola" ("mestre da escola"), e segunda-feira é "sundaféla", por exemplo.

“Um brasileiro conseguiria entender uns 75% do que alguém usando fá d’ambô quer dizer”, estima, talvez com algum otimismo, a atriz Mirella Aracil Ikaka, 35, que viaja frequentemente à ilha onde o pai nasceu. “Tem muitas palavras que o fá d’ambô usa do português, como faca, em vez do espanhol cuchillo.”

Mesmo dominando a língua do pai, Mirella decidiu aprender português. Ela é aluna de um curso oferecido gratuitamente pela embaixada do Brasil no país desde 2010, que hoje conta com cerca de 60 estudantes.

“Gosto de viajar e, como atriz, tenho que conhecer outros idiomas, outros horizontes e encontrar novas oportunidades intelectuais e profissionais”, diz.

Jovens de Guiné Equatorial estudam português em curso oferecido pela Embaixada do Brasil no país africano - Divulgação

As aulas são coordenadas pelo mineiro Renato Cândido Guimarães, 38. “O português é procurado por pessoas que buscam o Brasil como uma nova oportunidade de estudo ou trabalho. Querem aumentar seu leque de possibilidades futuras”, diz o professor, que costuma usar referências de música e gastronomia brasileiras nas aulas.

Desde 2018, um acordo as duas nações oferece bolsas a estudantes do país africano em universidades brasileiras, desde que dominem o idioma português. Em três anos, foram mais de cem jovens contemplados.

O programa é uma das ações que o governo local, ainda timidamente, tenta tomar em prol do português. Também há um site oficial do idioma, além de pontuais iniciativas educacionais e culturais. Está em implantação, além disso, com apoio do Brasil, um curso de formação de professores de português pela Universidade Nacional da Guiné Equatorial.

“A grande dificuldade é formar pessoas que possam replicar o ensino da língua. É um processo lento”, diz o embaixador brasileiro na Guiné Equatorial, Evaldo Freire, 67.

O ensino do português em escolas públicas ainda é incipiente. Mesmo na ilha de Annobón, crianças aprendem apenas o espanhol, apesar de falarem o idioma local no dia a dia.

Segundo o embaixador, o Brasil tem dado mais atenção à difusão do português do que os outros membros da CPLP, inclusive Portugal. Isso pode estar relacionado ao fato de que os portugueses mostraram resistência à entrada do país na comunidade, sobretudo pela falta de liberdades civis e políticas na Guiné Equatorial.

O ingresso contou com forte lobby do Brasil e de países africanos. Para o governo brasileiro, pesaram também as relações econômicas.

O ditador de Guiné Equatorial, Teodoro Obiang, que está no poder desde 1979 - Ludovic Marin/Pool/Reuters

"A adesão da Guiné Equatorial à CPLP envolveu uma série de questões que vão além do plano linguístico, já que o português no país é praticamente inexistente", diz Adriano de Freixo, coordenador do programa de pós-graduação em Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).

"Um dos compromissos assumidos pelo governo no momento da entrada foi a adoção de políticas voltadas à promoção do idioma, mas muito pouco foi feito desde então."

Segundo Freixo, cuja tese de doutorado foi sobre a CPLP, houve também um aspecto geopolítico. "Em razão de seu regime ser muito criticado internacionalmente pelo autoritarismo, o país buscou a CPLP como forma de inserção internacional, da mesma forma que entrou na comunidade francófona nos anos 1990", afirma.

Com recursos do petróleo, o país se torna atraente para entidades internacionais em busca de maior projeção. Empreiteiras brasileiras ganharam diversos contratos no país, inclusive no projeto mais ambicioso da ditadura local: a construção de uma nova capital na parte continental do país. Também foram contempladas com a pavimentação de estradas.

No campo militar, chegou a haver negociações durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para o Brasil reequipar a Marinha da Guiné Equatorial, com a venda de uma fragata, mas o negócio acabou não prosperando. Na época, considerações sobre direitos humanos foram ignoradas.

Em 2018, Lula foi acusado pela Operação Lava Jato de lavagem de dinheiro e tráfico de influência, por ter supostamente usado seu prestígio para interferir em decisões de Obiang que favoreceram negócios da empreiteira brasileira ARG no país. Em troca, a empresa teria doado R$ 1 milhão ao Instituto Lula. A ação, porém, foi trancada pela Justiça em 2021 como desdobramento da suspeição decretada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) contra o ex-juiz Sergio Moro.

O embaixador brasileiro diz que atualmente há acordos de cooperação entre os dois países em diversas áreas, incluindo educação, saúde e economia. Nos próximos dias, uma missão empresarial brasileira desembarca no país para prospectar negócios. A economia local é movida a petróleo, embora a renda com o produto tenha caído nos últimos anos, esvaziando os cofres do governo.

Sobre a falta de democracia, o diplomata diz que o Brasil tem ajudado no fortalecimento das instituições locais e em áreas como combate à corrupção. “Cada país tem seu momento. A gente tem de ter essa compreensão, de que nem todos estão no mesmo estágio de desenvolvimento institucional. Mas estão fazendo progressos.”

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