Manifestantes antirracistas mortos por adolescente nos EUA não poderão ser chamados de vítimas

Juiz do caso de Kyle Rittenhouse afirma que termo recai em pré-julgamento, mas permitirá que defesa se refira aos baleados como 'desordeiros'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

BAURU (SP)

Um juiz decidiu que três homens baleados por um adolescente nos atos antirracistas em Kenosha, nos EUA, em agosto de 2020, não podem ser chamados de "vítimas" durante o julgamento do atirador.

Kyle Rittenhouse, 18, responde a acusações de, entre outros crimes, homicídio e tentativa de homicídio por ter atirado em Joseph Rosenbaum, Anthony Huber e Gaige Grosskreutz —os dois primeiros morreram em decorrência dos ferimentos.

O julgamento de Rittenhouse está previsto para começar em 1º de novembro. Durante a fase do processo em que se estabelecem diretrizes básicas de como se darão as audiências, o juiz Bruce Schroeder determinou que a acusação não poderá se referir aos baleados como vítimas, porque, em sua visão, o termo está carregado de pré-julgamento.

Kyle Rittenhouse, acusado de homicídio por atirar em manifestantes, durante audiência em Kenosha, nos EUA - Nam Y. Huh - 30.out.20/Reuters

Em contrapartida, o promotor Thomas Binger pediu ao juiz que a defesa de Rittenhouse também seja proibida de descrever Rosenbaum, Huber e Grosskreutz como "desordeiros, saqueadores ou incendiários".

Para ele, os termos são tão ou mais carregados de juízo de valor do que "vítimas" e deveriam ser banidos, porque não há evidências de que os baleados estavam cometendo crimes quando foram atingidos.

O juiz Schroeder negou o pedido, mas condicionou o uso dos adjetivos considerados pejorativos à apresentação de elementos que comprovassem as afirmações dos advogados do réu.

"Deixemos as evidências mostrarem o que elas mostram", disse o magistrado. "E se as evidências mostrarem que uma ou mais dessas pessoas [os baleados] estavam envolvidas em incêndios criminosos, tumultos ou saques, então não direi à defesa que eles não podem chamá-los assim."

De acordo com a imprensa americana, Schroeder tem um histórico de não permitir o uso do termo "vítima" ou "suposta vítima" nos julgamentos que conduz até que o réu seja condenado pelo crime de que é acusado.

Juristas que estudam o tema reconhecem problemas tanto no uso da palavra banida por Schroeder quanto no do termo técnico —"testemunha reclamante"— que ele propõe como alternativa. O jargão sugerido pelo magistrado é comumente utilizado para referência a uma pessoa que tenha sofrido a ação de um crime ou de uma aparente violação da lei.

Advogados de defesa costumam alegar que o uso de "vítima" acaba por ferir o direito constitucional de presunção de inocência de um suspeito. Sob a mesma linha de raciocínio, usa-se "réu" e não "criminoso" para se referir a alguém que foi acusado de um crime.

Em um artigo acadêmico em que analisa o efeito significativo que o uso da linguagem pode ter nos tribunais a partir de casos reais da Justiça americana, o professor Michael Conklin, da Universidade Estadual Angelo, no Texas, aponta a falta de consenso sobre o conceito de "vítima" em diferentes estatutos do direito, o que dificulta uma posição final e definitiva sobre o tema.

Por outro lado, "testemunha reclamante" também acaba sendo problemático até mesmo por questões subjetivas, por remeter a "reclamações irritantes de crianças ou de colegas de trabalho", escreve.

"Embora muitos outros termos possam ser potenciais substitutos para evitar os problemas da palavra 'vítima', cada um está repleto de suas próprias implicações problemáticas. Portanto, a decisão não deve ser tomada levianamente pelos tribunais, e simplesmente usar o nome da parte deve ser considerado uma solução razoável", conclui Conklin.

Relembre os casos de Kyle Rittenhouse e Jacob Blake

À época com 17 anos, Rittenhouse foi preso em 26 de agosto sob suspeita de ter sido responsável pelo assassinato de duas pessoas durante manifestações contra o racismo e a violência policial em Kenosha, no estado americano de Wisconsin.

O adolescente morava em Antioch, no estado de Illinois, a cerca de 33 km de Kenosha. Ele cruzou a divisa até o estado vizinho em resposta ao chamado de grupos civis, formados majoritariamente por pessoas brancas, que se organizaram nas redes sociais para convocar ativistas contrários à pauta dos protestos.

Esses grupos alegavam proteger propriedades de saques e depredações durante os protestos. Para isso, Rittenhouse estava armado com um fuzil AR-15. Imagens gravadas por testemunhas registraram o momento em que manifestantes tentaram desarmá-lo após ele atirar em um deles. O adolescente então fez disparos à queima-roupa contra seus perseguidores, o que resultou em duas mortes.

"Parece ser um membro de milícia que decidiu ser um justiceiro, tomar a lei com as próprias mãos e derrubar manifestantes inocentes", disse, à época, o vice-governador de Wisconsin, o democrata Mandela Barnes.

Grosskreutz, que sobreviveu aos tiros de Rittenhouse, processou neste mês o departamento de polícia de Kenosha, bem como o gabinete do xerife local. Na ação, ele acusa as autoridades de terem delegado a uma "milícia itinerante" a missão de "proteger a propriedade e ajudar a manter a ordem". ​

Milhares de pessoas tomaram as ruas de Kenosha naquela semana como reação a um episódio de uso excessivo de força com viés racial ocorrido dias antes. Jacob Blake, um homem negro, levou quatro tiros pelas costas diante de seus filhos que, à época, tinham 3, 5 e 8 anos.

Um vídeo publicado nas redes sociais mostra Blake andando até o assento do motorista do carro, seguido por dois policiais que apontam armas para suas costas. Quando ele abre a porta do veículo, um dos policiais dispara sete vezes —quatro tiros acertaram Blake.

Segundo a polícia, os dois agentes estavam no local em resposta a um chamado de incidente doméstico. Blake sobreviveu aos disparos, mas foi internado em estado crítico, chegou a ser algemado ao leito no hospital e ficou paralisado da cintura para baixo.

ATENÇÃO: O VÍDEO A SEGUIR CONTÉM IMAGENS FORTES

Às vésperas da eleição presidencial, os casos de Blake e Rittenhouse tiveram destaque nas campanhas de Donald Trump e Joe Biden, na esteira da onda de atos antirracismo após o assassinato de George Floyd, três meses antes.

Trump esteve em Kenosha, mas se recusou a conversar com a família de Blake após ser informado de que um advogado estaria presente. Na cidade, o republicano se encontrou com policiais, descreveu os protestos como "terrorismo doméstico" e defendeu aumentar o uso de força contra os manifestantes.

No caso Rittenhouse, o agora ex-presidente disse que o adolescente agiu em legítima defesa e "provavelmente teria morrido" se não tivesse disparado —principal tese dos advogados do atirador.

Biden também visitou a cidade e, embora tenha criticado a violência dos protestos, encontrou-se com a família de Blake, falou com ele por telefone e conversou sobre como mudar o tratamento da polícia em relação às minorias e sobre o impacto da escolha de Kamala Harris, uma mulher negra, como vice.

Em novembro de 2020, Rittenhouse pagou fiança de US$ 2 milhões e foi libertado. Depois, em janeiro deste ano, declarou-se inocente de todas as acusações. No mesmo dia, a promotoria de Kenosha anunciou que não formalizaria nenhuma denúncia contra o policial que atirou em Jacob Blake.

O agente Rusten Sheskey voltou ao trabalho em abril, após uma licença administrativa, e não foi alvo de nenhuma medida disciplinar. Outros dois policiais que participaram da abordagem também retornaram ao trabalho depois que o chefe do departamento concluiu que eles agiram de maneira lícita e apropriada.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.