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China Ásia

Mulheres se tornam peças-chave na transição demográfica e econômica da China

Ouvir as demandas delas é necessário também para a própria legitimidade do Estado-Partido chinês

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Tatiana Prazeres

colunista da Folha

Talita Fernandes

editora sênior da Shūmiàn

Pequim

As expectativas do governo chinês mudaram tão rapidamente que as propagandas nas ruas ainda mantêm o padrão antigo da "família margarina". No metrô de Pequim, por exemplo, é possível ver um anúncio do Templo do Céu, um dos cartões postais da capital, em que pais jovens aparecem com duas crianças —um menino e uma menina—, todos felizes num passeio em um dia de céu azul.

Após a política do filho único imperar durante 36 anos, o governo passou a estimular a formação de famílias maiores. A grande mudança ocorreu em 2015, quando ter um segundo filho foi permitido. Em maio de 2021, foi a vez de o terceiro ser autorizado. Assim, os cartazes do metrô já estão desatualizados.

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Chinesas em um vagão de metrô exclusivo para mulheres em Guangzhou, capital da província de Guangdong, a mais populosa do país  - Giulia Marchi - 5.fev.18/The New York Times

Políticas de planejamento familiar são tão debatidas na China que, horas depois do anúncio da última mudança, a hashtag #apolíticadoterceirofilhochegou teve 1,76 bilhão de visualizações na rede Weibo.

Essa guinada acontece porque uma crise demográfica bate à porta da China, algo que ficou evidente no censo divulgado neste ano. As mulheres chinesas têm, em média, 1,3 filho, taxa bem abaixo do necessário para a reposição da população, de 2,1 filhos. Por isso, a população deve começar a encolher em breve.

A redução populacional preocupa sobretudo devido às repercussões econômicas. A diminuição da força de trabalho limita o potencial de crescimento do país e, sem o bônus demográfico de tempos atrás, há menos gente produzindo e mais gastos com saúde, previdência e assistência social aos idosos.

O temor é o de que, como em outros países, a China fique presa na armadilha da renda média, em que, após atingir certo nível de riqueza, vem a estagnação, impedindo-a de alcançar um padrão de renda alta.

Para enfrentar esse desafio, o comando central chinês, formado em sua maioria por homens, precisa ouvir e olhar para as chinesas, peças-chave na transição demográfica e econômica do país.

Na China de hoje, os casamentos estão em baixa, os divórcios em alta, e o interesse em ter dois filhos —quem dirá três— não é grande. Logo que as autoridades anunciaram que os casais poderiam ter três filhos, a agência estatal de notícias Xinhua pensou ser uma boa ideia conduzir uma enquete online: “Você está pronto para a política de três filhos?”. Resultado: “Não considero, de jeito nenhum, ter três filhos” foi a resposta mais selecionada, muito à frente das demais. A enquete rapidamente saiu do ar.

As mulheres são as que mais hesitam, pois sabem que, apesar de mudanças significativas nas últimas quatro décadas, a sociedade segue depositando responsabilidades elevadas sobre elas.

O governo tenta reverter a situação. Para conter a alta do número de divórcios, por exemplo, o primeiro Código Civil chinês, em vigor desde janeiro, estabeleceu um período para "esfriar a cabeça", uma espécie de intervalo entre o pedido e a efetivação da separação para, quem sabe, evitar decisões impulsivas.

Quando o governo fala em famílias maiores, refere-se ao modelo tradicional. Caso elas decidam ser mães sozinhas, encontram dificuldades para que os filhos obtenham o “hukou”, o registro de residência que garante acesso aos serviços públicos básicos como saúde e educação.

Em setembro, o governo também anunciou um estímulo à educação sexual de jovens, com o objetivo claro de evitar abortos que não sejam motivados por questões de saúde. A interrupção da gravidez é legal e relativamente comum na China, passando ao largo do debate moral-religioso comum em muitos países.

Abortos, aliás, eram praticados em nome da política de planejamento familiar, sobretudo quando o limite era de um filho. O anúncio dessas mudanças, ainda sem muitos detalhes, faz com que muitos questionem até onde o governo pretende ir para determinar o tamanho ideal da sociedade e, portanto, das famílias.

Devido às altas expectativas relacionadas à educação, criar filhos custa especialmente caro para a classe média chinesa. Por isso, o governo se movimentou para impor limites rígidos à indústria de aulas extracurriculares, na tentativa de ajudar a aliviar a pressão financeira sobre os pais.

Algumas cidades foram além e criaram incentivos financeiros para proles maiores. Em Panzhihua, na província de Sichuan, os casais poderão pleitear uma ajuda mensal equivalente a US$ 77 (cerca de R$ 423) para o segundo e o terceiro filhos, até que as crianças completem três anos de idade. Gansu, uma das províncias mais pobres da China, também divulgou recentemente medidas com a mesma finalidade.

Ainda que sofram pressão de familiares para “dar continuidade" ao sangue e ao sobrenome do pai, ou que corram o risco de serem estigmatizadas como as "que sobraram", muitas mulheres têm resistido a seguir os passos de suas mães. Cada vez mais elas têm se voltado contra o modelo de casamento tradicional.

Sobre os homens recaem cobranças para que sejam deixadas de lado características consideradas “femininas”. Agora, autoridades determinaram que homens “afeminados” tenham menos espaço na TV.

O movimento feminista, apesar das dificuldades, tem crescido na esteira do aumento de denúncias de casos de abuso e assédio sexual, na linha do #metoo. Mas mesmo com conquistas recentes, como leis e campanhas contra violência doméstica, a luta das mulheres na China é diferente da de outras partes.

Feministas testam os limites do sistema e a tolerância das autoridades. Normalmente, encontram soluções criativas, buscam manter a discrição, usam emojis em vez de texto para contornar controles de conteúdo ou se manifestam evitando confrontação —uma comediante feminista, por exemplo, faz sucesso nas redes. Porque as mulheres, claro, ainda têm de contribuir para preservar a dita harmonia social.

O desafio demográfico requer que as mulheres, além de procriar, sigam trabalhando. Com a população economicamente ativa encolhendo, elas são indispensáveis na força laboral. Precisam, assim, continuar consumindo, além de cuidar da geração anterior, cada vez mais longeva. A conta não fecha. São necessárias mudanças significativas nas políticas de suporte e no mercado de trabalho.

Como em outros países, a China precisa de mais creches. Mas os chineses precisam também vencer uma barreira cultural: a persistência da tradição de deixar crianças aos cuidados dos avós paternos, o que aumenta ainda mais a dependência das mulheres em relação ao marido. A percepção popular é a de que seria melhor confiar a eles —não a algum estranho– o cuidado dos pequenos.

Ao mesmo tempo, o mercado de trabalho pode ser cruel com as mulheres, especialmente em idade fértil ou com filhos pequenos. Ainda ocorre de uma mulher enfrentar, em entrevistas de emprego, perguntas sobre se pretende engravidar —talvez um resquício da época em que a unidade de trabalho tinha a responsabilidade de garantir o respeito às regras de planejamento familiar.

A centralidade da mulher na nova fase econômica chinesa contrasta com a concentração persistente de homens na cúpula do governo e do Partido Comunista. Dos 25 membros do Politburo, uma das estruturas de poder mais importantes do país, há apenas uma mulher. No Comitê Permanente do Politburo, órgão ainda mais relevante, nunca houve uma mulher entre os seus sete membros.

Conceber políticas públicas com um olhar para a situação das mulheres também se relaciona com a legitimidade do partido diante das novas gerações —especialmente as mulheres da nova classe média urbana. Seus desejos e ambições podem ser muito diferentes dos de suas mães que, até poucas décadas atrás, viviam majoritariamente num ambiente rural e centrado no modelo de família tradicional.

A capacidade de as autoridades reconhecerem e responderem a essas mudanças tem impacto direto na satisfação —ao menos delas— em relação ao governo.

Se em 2021 o Partido Comunista Chinês comemorou seu centenário, agora já está de olho nos objetivos associados à próxima comemoração. Em 2049, no 100º aniversário da República Popular da China, os líderes do país pretendem realizar o dito “sonho chinês”.

Querem que a China seja “forte, democrática, civilizada, harmoniosa e um país socialista moderno’'. Pois a China não será tudo isso se as mulheres ficarem para trás. Ouvir as mulheres é necessário não apenas para o crescimento econômico, mas também para a própria legitimidade do Estado-Partido.

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