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Mundo só discute crise climática e subestima ameaças mais urgentes, diz historiador

Para Niall Ferguson, países não estão preparados para reagir a desastres mais graves do que o clima

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São Paulo

Para o historiador escocês Niall Ferguson, líderes mundiais concentram todas as suas energias discutindo as consequências da crise climática, enquanto ameaças mais urgentes e que podem causar mais mortes, como uma guerra entre os Estados Unidos e a China, são subestimadas.

Autor do livro “Catástrofe - Uma História dos Desastres - Das Guerras às Pandemias - E o Nosso Fracasso em Aprender como Lidar com Eles”, Ferguson fará uma palestra no ciclo Fronteiras do Pensamento no próximo dia 13 de outubro. “Como vimos no ano passado, pandemias levam apenas meses para acontecer, enquanto problemas ligados à mudança climática levam anos ou décadas", disse o escocês à Folha.

O historiador escocês Niall Ferguson durante entrevista em evento realizado em Singapura
O historiador escocês Niall Ferguson durante entrevista em evento realizado em Singapura - Nicky Loh - 20.out.16/via Getty Images

"Essa tendência de dizer sempre que o clima representa a maior ameaça é ligeiramente delirante, porque outras coisas podem acontecer de forma bem mais rápida e matar muito mais gente.”

No livro e na entrevista, o historiador conservador, considerado pela revista Time em 2004 uma das 100 pessoas mais influentes do mundo, critica lockdowns impostos na pandemia, afirma não acreditar que populistas como Donald Trump e Jair Bolsonaro devem levar a culpa pelas mortes por Covid e diz que os EUA precisam de instrumentos mais poderosos de dissuasão para impedir a China de atacar Taiwan.

O senhor afirma no livro que é raro encararmos o desastre que esperamos e que geralmente enfrentamos alguma outra ameaça que a maioria de nós está ignorando. O senhor acha que gastamos energia demais nos preparando para desastres ligados a mudanças climáticas? Qual desastre deveríamos focar? Partindo do pressuposto que há efeitos colaterais muito prováveis decorrentes do aumento de temperaturas, não estamos fazendo o suficiente, embora estejamos falando muito sobre o assunto e realizando várias conferências. Isso não está resultando em ações significativas. Mas o ponto é que não devemos concentrar toda a nossa atenção nos riscos decorrentes das mudanças climáticas, porque esses efeitos são lentos. Como vimos no ano passado, pandemias levam apenas meses para acontecer, enquanto problemas ligados à mudança climática levam anos ou décadas. Essa tendência de dizer sempre que o clima representa o problema mais importante, a maior ameaça, é ligeiramente delirante, porque outras coisas podem acontecer de forma bem mais rápida e matar muito mais gente.

Não acho que o aquecimento global vá matar tanta gente. Acho que vai forçar deslocamentos, mas não necessariamente vai matar como uma pandemia1. Então precisamos nos lembrar disso. Podem surgir novas pandemias ou variantes novas e perigosas da Covid. Se os EUA e a China entrassem em guerra, isso poderia facilmente chegar ao nível nuclear. Também há a guerra cibernética, que tem um potencial enorme para desestabilizar a sociedade.

Há inúmeros desastres que seriam muito mais rápidos que a mudança climática, então acho que precisamos manter nosso foco em todas essas ameaças e reconhecer que é um erro se concentrar em apenas uma. Há uma manada de rinocerontes. Há os rinocerontes cinza que nós vemos que estão chegando, mas, por algum motivo, escolhemos prestar atenção naquele que está lá atrás, movendo-se devagar, apesar de todos que se aproximam rapidamente. Essa foi uma das lições que deveríamos ter aprendido no ano passado.

1 Pesquisa publicada em maio na revista Nature mostrou que 37% das mortes por consequência do calor de 1991 a 2018 foram causadas pelo aquecimento global. E um estudo da Organização Meteorológica Mundial apontou que, em cinco décadas, de 1970 a 2019, 2 milhões de pessoas morreram devido a eventos climáticos extremos. Ainda que a capacidade de resposta dos sistemas de saúde tenha melhorado —o que leva a menores cifras de mortos a cada década—, a ocorrência desses eventos se multiplicou por cinco

Considerando catástrofes no sentido mais amplo, como o senhor faz no livro, existe algo em que deveríamos prestar mais atenção? A maioria dos países e das empresas subestima o risco de uma grande guerra entre EUA e China. Pode acontecer nos próximos anos, e as pessoas não estarão preparadas. Há uma enorme dependência da China, não apenas dentro das cadeias de fornecimento, mas também em um país como Brasil, e uma necessidade do mercado chinês para exportações.

Muitas pessoas não querem nem pensar em Guerra Fria, embora ela já esteja acontecendo. Os EUA deveriam investir em maneiras de dissuadir a China, sem aumentar os incentivos para [o líder chinês] Xi Jinping agir. Não estamos dissuadindo a China de tomar uma atitude arriscada. Na realidade, estamos fazendo coisas que aumentam as chances de isso acontecer.

A estratégia do governo Biden foi desenhada para dissuasão da China, mas não foi bem desenhada para conter os chineses em relação a Taiwan. Acho que uma invasão militar chinesa em Taiwan teria boas chances de sucesso, porque, neste momento, eles não têm nenhum empecilho convincente. Precisamos resolver isso rapidamente.

O maior erro da Grã-Bretanha no século 20 foi deixar de dissuadir a Alemanha duas vezes, o que acabou nos levando à guerra em uma posição de fraqueza. Temo que estejamos rumando para uma sequência de eventos semelhantes. Os EUA, de certa maneira, comprometem-se a defender aliados como Taiwan, mas não fazem o suficiente para demover a China da ideia de um ataque, e é assim que começam as guerras.

O anúncio recente da aliança entre EUA, Reino Unido e Austrália para a venda de submarinos nucleares não seria um instrumento dissuasório contra a China? É eficaz do ponto de vista diplomático, mas não como dissuasão. No campo diplomático, mostra à China que os EUA podem construir uma coalizão para se contrapor ao país asiático, junto com Índia e Japão no Quad. Mas não funciona para deter a China, porque os australianos demorarão anos para ter esses submarinos nucleares, talvez 20 anos. Então não é uma dissuasão imediata. Na verdade, tem o efeito contrário. Diz à China: seu tempo está acabando, então se vocês forem atacar Taiwan é preciso que façam isso logo.

O senhor afirma que a imprensa e as pessoas em geral tendem a culpar Donald Trump, Jair Bolsonaro e outros líderes populistas pelas consequências da pandemia, mas que isso não é justo. Reconheço que eles não foram muito hábeis na resposta à pandemia. Mas eles são responsáveis? A pandemia poderia ter tido um resultado diferente, ter um número menor de mortes? Não estou livrando a pele deles, os dois cometeram inúmeros erros e enganaram a população. Mas não estou convencido de que eles sejam responsáveis pelo excesso de mortalidade. Isso ocorreu devido a erros cometidos por autoridades de saúde pública que não se reportavam diretamente ao presidente.

Nos EUA, por exemplo, houve falta de testes durante meses, e isso foi culpa do Centro de Controle de Doenças [CDC, na sigla em inglês]. Em seu último livro ["A Premonição - Uma História Pandêmica"], Michael Lewis afirma que houve um fracasso do sistema e que isso teria acontecido sob qualquer presidente, fosse Barack Obama ou Bill Clinton. No fim das contas, não é o presidente que decide se um novo patógeno vai causar uma pandemia e o que deve ser feito a respeito. Foram decisões dos escalões mais baixos o fato de não haver rastreamento de infectados nos EUA ou o fracasso em proteger idosos em asilos. Isso ocorreu em nível estadual.

Houve uma epidemia desastrosa no governo Obama, a de opiáceos, e ninguém o culpa por isso. Os populistas cometeram o erro de se expor, colocar-se no centro dos acontecimentos, enquanto deveriam ter delegado isso em vez de dizer “eu consigo resolver” e “eu tenho as respostas”. Esse foi um equívoco. Pense em Obama durante a epidemia de opiáceos, ele nunca se colocou no centro da estratégia de resposta. É por isso que os populistas ficaram com a maior parte da culpa. Não acho que eles mataram tanta gente, quer dizer, não consigo calcular, mas vamos dizer que cerca de 10% das mortes se devam a decisões estúpidas do presidente.

O senhor não acha que o fato de a pandemia ter feito estragos maiores nesses países também se relaciona à falta de liderança dos presidentes e à tendência deles de minimizar a seriedade da Covid? Não acho que as autoridades de saúde tenham errado por falta de liderança. Uma das estranhas patologias dos servidores públicos é sua independência em relação ao poder central ou presidencial. Dominic Cummings, que era assessor do premiê britânico, Boris Johnson, descreveu o caos que foi a resposta no país —políticos, funcionários públicos e autoridades de saúde não agiram até que fosse tarde demais.

Então, não acho que, se reescrevêssemos a história com, por exemplo, Hillary Clinton, seria tão diferente. E é bom notar que estamos no fim de setembro, Joe Biden assumiu em janeiro, e a pandemia ainda não acabou. Mudar a liderança não resolve porque os problemas são muito mais sistêmicos2.

2 A média diária de casos de Covid nos EUA no dia 20.jan, quando Biden assumiu a Presidência, era de 194.402 e vinha em queda, após um pico de 251.863 no dia 11 de janeiro. Em 20.mai, 4 meses depois, o índice caiu para 29.061, com o avanço da vacinação. Após uma alta que começou em julho e viu seu ápice em setembro, 109.322 foi a média registrada na sexta (1°). Entre fevereiro e abril, o número de doses aplicadas diariamente nos EUA teve um salto, passando de 1,4 milhão em 23.fev, para 3,38 milhões em 13.abr. Desde então, vem caindo, e na sexta, 741.394 vacinas foram administradas. Até sexta, 54,96% da população americana estava com o quadro vacinal completo, e 64% haviam recebido ao menos a primeira dose

O senhor ressalta como as redes são determinantes na disseminação do vírus... Bom, há duas coisas que tornam esta pandemia diferente. Uma é que nunca estivemos tão conectados por meios de transporte aéreo internacional, então as coisas se movimentam muito mais rapidamente do que nos anos 1950 – isso é óbvio, voos diretos de Nova York ou San Francisco a Wuhan são recentes. E a segunda coisa é que a desinformação na internet se movimenta ainda mais rapidamente que o vírus.

Nos EUA, o problema nos últimos meses é que pessoas que se negam a tomar a vacina são extremamente vulneráveis à variante delta. Como você combate desinformação que convence pessoas de que a vacina foi desenhada para implantar chips na corrente sanguínea da população? Metade das pessoas que se negam a se vacinar acredita nisso. Pessoas como eu e você sabemos que essas teorias da conspiração são uma loucura, mas uma grande parte das pessoas, inclusive algumas com alta escolaridade, acreditam nisso. E a internet criou uma crise de autoridade, então as pessoas preferem o que ouvem nos grupos de Facebook ao que escutam de autoridades de saúde pública.

Nos anos 1950, todo mundo queria ser vacinado contra a pólio, porque não queria pegar a doença. Mas hoje vivemos em um mundo em que o pensamento mágico voltou, e uma parcela significativa da população não entende que o risco da doença é muitas vezes superior aos efeitos da vacina3. Isso demonstra o problema da educação e o poder da internet. E ninguém sabe como resolver, porque o Facebook não tem incentivos suficientes para impedir que sua plataforma seja usada para disseminação de teorias da conspiração, porque elas são uma fonte de engajamento importante demais para a empresa.

3 A maioria das mortes nos EUA tem ocorrido entre pessoas que não tomaram a vacina. Segundo o jornal The New York Times, das cerca de 100 mil mortes registradas desde meados de junho, o CDC identificou apenas 2.900 de pessoas que estavam vacinadas

Isso pode impulsionar a aprovação de regulação das plataformas? Se não conseguimos aprovar regulação, ou melhorar a regulamentação existente, depois das eleições de 2016, que deveriam ter funcionado como um alerta urgente, não sei como conseguiremos. Cerca de um terço das mortes por Covid-19 nos EUA pode ser atribuída à desinformação, o que leva pessoas a fazerem coisas muito perigosas, como se recusar a usar máscaras e a tomar vacina. São muitas mortes.

No entanto, não vejo sinais concretos de mudanças na lei ou na regulamentação. Vamos passar por uma grande farsa de debate antitruste, ações que não vão mudar nada. Essas plataformas demonstraram o poder político de que dispõem, pois desde janeiro Trump desapareceu da esfera pública. Então não sei o que vai ser necessário para convencer as pessoas de que a esfera pública hoje é dominada por um punhado de empresas que não têm nenhuma responsabilidade. É inacreditável que não tenhamos feito praticamente nada nos últimos anos para abordar esse problema.

O senhor é crítico dos lockdowns, acha que foram uma medida exagerada que causou mais danos do que benefícios. Por quê? É muito importante entender essa palavra, porque ela cobre uma vasta gama de situações. O lockdown recomendado em março do ano passado pelo outro Ferguson [Neil Ferguson, epidemiologista britânico do Imperial College] significava manter as pessoas dentro de casa e acabar com a vida social e econômica até que se descobrisse uma vacina. Era uma loucura, obviamente, porque se mantivéssemos todos dentro de casa até que existisse uma vacina teríamos um colapso econômico. É a isso que me refiro —e, alguns países europeus, incluindo o Reino Unido, fizeram exatamente isso.

Distanciamento social é não ficar perto dos outros, evitar locais cheios. Interessante que até em estados americanos em que não houve quase nenhum tipo de restrições legais, como nas Dakotas, as pessoas também mudaram seu comportamento e saíram muito menos. A escolha não era trancar todo mundo ou deixar o vírus circular livremente. Mesmo em países onde não houve lockdown no sentido estrito houve muito menos mobilidade e mais gente trabalhando de casa. Precisamos evitar uma dicotomia simplista.

Os primeiros lockdowns do ano passado causaram enorme desestabilização social e econômica, tanto que os outros lockdowns no resto do ano foram muito menos radicais. Os primeiros eram muito disruptivos, não eram sustentáveis. E acho que eles causaram quase tantos problemas quanto benefícios, porque houve uma série de consequências indesejadas4.

4 Estudo publicado pela revista Science em fevereiro deste ano coletou dados cronológicos de diferentes medidas adotadas em 41 países de janeiro a maio de 2020. A partir dessas informações, os autores avaliaram os efeitos das intervenções na redução na taxa de reprodução do vírus. A limitação de reuniões para até dez pessoas, por exemplo, gerou uma redução de 42%, e o fechamento de escolas e universidades levou a uma queda de 38%. Já o fechamento de alguns tipos de empresas levou a uma redução de 18%, enquanto a interrupção da maioria dos serviços não essenciais resultou em taxa 27% menor

O lockdown radical era para ser o último recurso, depois de termos feito coisas inteligentes como aumentar os testes, rastrear contatos de infectados, isolá-los. Fizeram isso em Taiwan e na Coreia do Sul, mas no Ocidente ninguém fez. É simplista dizer: "O Ferguson é um cético dos lockdowns, é uma dessas pessoas malucas". Mas estou apenas tentando pensar na relação custo-benefício dos primeiros lockdowns.

Como devemos nos preparar para as próximas catástrofes? Não podemos prever o próximo desastre e é inútil tentar. O mais importante é reagir de forma rápida quando soubermos que há um novo patógeno em Wuhan, sentir o primeiro tremor em San Francisco ou quando começar a guerra entre China e EUA. O importante é a velocidade da reação. Você consegue ver todos os rinocerontes cinza se aproximando, mas não consegue enxergar o cisne negro que está vindo lá de longe, então precisa manter uma visão ampla para responder rapidamente [o termo cisne negro foi cunhado por Nassim Nicholas Taleb para se referir a eventos que são imprevisíveis e levam a resultados impactantes; já o termo rinocerontes cinza foi popularizado por Michele Wucker para descrever perigos óbvios que muitas vezes são ignorados].

O problema é que, na maioria das democracias, incluindo políticos eleitos e servidores públicos, temos uma burocracia que cresce de forma inexorável e cria uma espécie de máquina do desastre para lidar com catástrofes. Mas essa máquina se move tão devagar que os desastres geralmente a superam, apesar de sempre existirem inúmeros planos de resposta às catástrofes.

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Raio-x

Niall Ferguson, 57
Historiador escocês, publicou 16 livros, incluindo best-sellers como "A Ascensão do Dinheiro", "O Horror da Guerra" e, mais recentemente, "Catástrofe" (ed. Planeta). Também escreveu e apresentou documentários para a TV. Foi professor da Universidade Harvard e da London School of Economics.

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