Número de pesquisas sobre crise do clima cresce, mas é desigual entre continentes

Estudo mapeia produções científicas e traduz em números as disparidades, que atingem principalmente África e Ásia

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Guarulhos e São Paulo

A desigualdade entre os continentes, tradicionalmente lida com base em aspectos econômicos e sociais, ganhou nesta segunda-feira (11) um novo item a ser considerado: o desequilíbrio no volume da publicação de pesquisas sobre as consequências da emergência climática.

Um estudo publicado na revista Nature Climate Change joga luz sobre o assunto ao mapear cerca de 102 mil pesquisas sobre o tema em duas bases internacionais de produção científica —Web of Science e Scopus— por meio de machine learning (aprendizado de máquina), método que torna possíveis análises inviáveis apenas com esforços humanos.

Em 48% da área terrestre —que abriga 74% da população—, os pesquisadores encontraram níveis considerados robustos ou altos de pesquisas sobre os impactos da crise do clima. O mesmo não se pode dizer de 33% da área global, onde está 11% da população —neste caso, ainda que existam evidências dos impactos climáticos, são raras as produções que se debruçam sobre o tema.

O estudo mostra que 85% da população mundial vive em áreas nas quais as tendências de temperatura e chuvas já foram impactadas pelo aquecimento global. Embora a maioria resida em regiões afetadas pela ação humana no clima, a forma como esses impactos são estudados é desigual.

Mulheres tentam reconstruir casa destruída por inundações no Sudão do Sul - Ashraf Shazly - 14.set.21/AFP

Em números absolutos, o continente africano soma pouco mais de 7.570 estudos sobre os impactos da emergência climática, dos 102 mil analisados —número semelhante ao da Oceania. A cifra é uma fração da observada para a América do Norte e Ásia (cerca de 30 mil cada) e Europa (17,7 mil), mas ainda maior da vista na América do Sul, com 4.700 pesquisas.

Se considerada a proporção por milhão de habitantes, os maiores déficits da literatura disponível estão na África e na Ásia, respectivamente, enquanto a Oceania sai na liderança.

“Essas lacunas de evidência constituem pontos cegos substanciais para entender os impactos climáticos e, em alguns casos, entender a influência antropogênica na temperatura e a precipitação regionais”, afirma o estudo.

A desigualdade na literatura científica sobre mudanças climáticas, ao tornar escasso o conhecimento sobre os impactos do aquecimento global em algumas regiões, impede que sejam estruturadas ações para mitigar esse cenário, diz à Folha Max Callaghan, pesquisador do Mercator Research Institute on Global Commons and Climate Change, de Berlim (Alemanha), e principal autor do estudo.

“Precisamos nos adaptar às mudanças climáticas, e é preciso direcionar o financiamento para isso”, diz. “Os fluxos de financiamento internacional precisam ir para lugares onde as mudanças estão acontecendo e tendo maior impacto, por isso é tão importante que tenhamos um bom mapeamento dessas consequências.”

Entre as regiões com pesquisas limitadas, explica o estudo, estão áreas escassamente povoadas e de difícil acesso, como a Sibéria e o deserto do Saara. Mas isso não exclui a relação direta entre escassa literatura científica e desigualdade econômica: 23% da população dos países de baixa renda vive em áreas com poucos estudos sobre os impactos do aquecimento global. Em países de alta renda, essa relação cai para 3%.

A pesquisa destaca como regiões de “pontos cegos” partes do sudeste, oeste e norte da Ásia, bem como o oeste africano e a África subsaariana. É nesta região que fica o Sudão do Sul, onde ao menos 623 mil pessoas foram afetadas por inundações desde maio, segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (Ocha).

Chuvas torrenciais transbordaram rios e inundaram casas e fazendas em oito dos dez estados do país, de acordo com a agência. Dois terços das pessoas nas áreas afetadas correm ainda risco de passar fome porque os preços dos alimentos subiram 15% desde agosto, acrescentou a entidade. A situação intensificou ainda a migração climática —pessoas que migram, dentro ou fora de seu país, em razão das mudanças do clima.

O fenômeno não é novo. No ano passado, enchentes afetaram cerca de 700 mil pessoas no país mais jovem do mundo, independente desde 2011. Destas, 100 mil não conseguiram retornar aos seus locais de origem, de acordo com o Ocha. No quadro geral, 60% dos 11 milhões de habitantes do Sudão do Sul passam fome devido a conflitos, secas e inundações.

Na China, inundações recordes ao longo do ano têm acendido o alerta para as mudanças climáticas e ampliado a pressão para que o país, com uma matriz energética dominada pelo carvão, assuma compromissos domésticos e diplomáticos mais robustos.

Somente no último fim de semana, mais de 1,75 milhão de moradores da província de Shanxi, no norte do país, foram afetados por enchentes, após a região registrar mais de cinco vezes o volume de precipitação média normal para o mês de outubro. Ao menos 15 pessoas morreram, mais de 120 mil estão desabrigadas, e 60 minas de carvão interromperam as atividades.

Meses antes, no final de julho, mais de 300 pessoas morreram durante inundações na província de Henan, e o regime do país enfrentou críticas e acusações de despreparo.

Em meio aos problemas observados pelo estudo, um registro é positivo: o volume de produção científica sobre os impactos da crise do clima cresceu —e muito— nas últimas décadas.

No ano de 1990, quando foi publicado o primeiro relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na sigla em inglês), foram 278 estudos. Três décadas depois, em 2019, mais de 9.300 pesquisas sobre impactos das mudanças climáticas foram publicadas.

Ao final da pesquisa, os autores acrescentam que pequenos erros devem ser levados em conta em meio ao uso do machine learning, que não consegue avaliar, por exemplo, a qualidade dos materiais. Mas salientam que o esforço empreendido no material “é imprescindível diante do volume de literatura científica”. Para a análise, foram considerados apenas os estudos publicados com resumos em inglês.

A pouco menos de três semanas para o início da COP 26, a reunião global sobre o clima das Nações Unidas, Max Callaghan afirma que a publicação do estudo soma evidências a alguns argumentos. O primeiro, diz, é o de que, se as economias mundiais quiserem frear a velocidade do aquecimento global, é urgente estabelecer, o quanto antes, as emissões zero de carbono.

“A outra parte da mensagem diz respeito às adaptações”, diz. “Precisamos pensar sobre fluxos financeiros para adaptar as regiões, porque a mudança climática já está aí, acontecendo. E devemos pensar esses fluxos do ponto de vista da justiça climática, porque os países que causaram mais emissões são, no final, responsáveis pelo aquecimento que ocorre em todos as nações.”

Com AFP

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