Pandemia evidenciou diferenças estruturais entre países de língua portuguesa

Enquanto Portugal é o país mais vacinado do mundo, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau não chegam a 6% de imunizados

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Guarulhos

Entre as inúmeras mudanças que marcaram o cotidiano do arquipélago de Cabo Verde na pandemia do coronavírus, uma ganhou dimensão histórica para os moradores. Foi a primeira vez, desde a independência conquistada em 1975, que a jovem democracia do país se viu diante de um estado de emergência nacional.

“De repente, estamos numa democracia, com liberdade de expressão, e temos de tomar uma medida como essa, que restringe o direito de ir e vir, uma das liberdades fundamentais”, diz Helio Rocha, mestre em saúde pública e professor-adjunto na Universidade Jean Piaget.

A medida foi declarada pelo presidente Jorge Carlos Fonseca em 28 de março de 2020, apenas dez dias depois de o primeiro caso de Covid-19 ser identificado no país. Àquela altura, Cabo Verde contava com cinco casos registrados da doença e uma morte. Os números ainda baixos fomentaram críticas de que o político estaria se precipitando.

Estudantes angolanos lavam as mãos em pátio na reabertura das escolas em Luanda, depois de elas passarem 11 meses fechadas devido à Covid
Estudantes angolanos lavam as mãos em pátio na reabertura das escolas em Luanda, depois de elas passarem 11 meses fechadas devido à Covid - Osvaldo Silva - 10.fev.21/AFP

O estado de emergência nacional foi prorrogado por três vezes, lembra Rocha, levando a um período contínuo de dois meses sob o guarda-chuva das medidas restritivas. Em algumas ilhas cabo-verdianas —são dez, além de cinco ilhotas—, restrições pontuais continuaram a ser tomadas. As portas para o turismo, motor da economia do arquipélago, foram fechadas, o que levou à piora da situação financeira e social.

Se no início a resposta pública foi de receio com a rigidez das medidas do Estado, hoje ela é de aprovação. Entre os especialistas, a avaliação é de que Cabo Verde foi a nação que se saiu melhor na resposta à pandemia entre os Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa).

Aos números: o país tem 23% da população com o esquema vacinal completo, liderando os lusófonos africanos nesse quesito. Em junho, quando foi anunciada a implementação de um certificado de vacina —o “nha card”— para acessar eventos públicos e espaços fechados, a procura pelo imunizante disparou.

O cenário de bom desempenho cabo-verdiano, porém, ganha outros contornos se o universo de comparação deixa os Palop e se amplia para a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que também inclui Portugal, Brasil e Timor Leste. A pandemia acentuou e jogou luz sobre diferenças estruturais que, apesar da língua e da história em comum, persistem entre os lusófonos.

Enquanto Portugal é a nação com maior porcentual de habitantes com o esquema de imunização completo no mundo (mais de 85%) e o Brasil, após um início claudicante da campanha, tem 45% da população totalmente vacinada, a situação é bem diferente nos demais. Na Guiné-Bissau, por exemplo, só 0,4% dos habitantes tomou as duas doses —quadro pouco melhor vivem Angola (3%) e Moçambique (5,4%).

Além da distribuição desigual de vacinas que atinge em maior peso o continente africano, outro fator que atrapalha e atrasa as campanhas está na parte logística, segundo o pesquisador da Fiocruz Augusto Paulo Silva, responsável pelo monitoramento do plano estratégico de cooperação em saúde da CPLP. “A maioria desses países estava com dificuldades financeiras e subfinanciamento de seus ministérios da Saúde, já que estão sob ajuste fiscal do FMI e do Banco Mundial.”

Ele explica que, no início da pandemia, quando a maior dificuldade era a aquisição de testes laboratoriais e material de proteção individual, como máscaras, os Palop se beneficiaram da cooperação chinesa, que fez diversas doações à União Africana.

A realidade socioeconômica dessas nações, porém, sempre se sobrepôs. As políticas de lockdown, por exemplo, foram atrapalhadas pelos altos níveis de informalidade entre os trabalhadores, explica Silva.

Dados de 2018 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) mostram que Angola, por exemplo, tem 94% dos trabalhadores em atividades informais, liderando os lusófonos nesse quesito. Na ponta oposta, o índice em Portugal é de apenas 12%. No Brasil, quase metade da população (46%) participa desse setor. É esperado que, com a pandemia, esses percentuais cresçam.

Segundo a microbiologista Eliane Arez, doutoranda no Instituto Gulbenkian de Ciência (Portugal), em Angola a preocupação pública dada ao coronavírus foi sobreposta por problemas crônicos como a malária, a desnutrição e a falta de acesso a água potável.

De janeiro a maio de 2021, por exemplo, o país da costa oeste africana registrou 3,8 milhões de casos de malária e 5.570 mortes pela doença. No mesmo período, os números da Covid foram, respectivamente, 17 mil e 360 —ainda que exista, no entanto, ampla subnotificação.

“A Covid tornou mais claros os problemas de cada país. Se Angola, com um sistema de saúde fraco, precisava de 20 anos para se estabilizar, agora precisa de 30”, diz a pesquisadora. A realidade local fez com que medidas de combate ao coronavírus fossem pouco ou quase nada benquistas pela população.

A menor incidência da doença nos Palop —como de resto em todo o continente africano—, ainda que levada em conta a subnotificação, não tem por ora uma explicação comprovada, explica Augusto Paulo Silva, da Fiocruz. Há, porém, algumas hipóteses.

“A primeira é a imunidade natural, já que esses países tiveram muitas outras epidemias e foram expostos a doenças transmissíveis infecciosas”, diz. “A segunda, a idade da população, que é majoritariamente jovem nos países africanos de língua portuguesa.”

Outro fator que entra na conta é a menor intensidade de comunicação com cidadãos de outros países. Nessa confluência de elementos, o arquipélago de Cabo Verde é o integrante dos Palop que foge à regra: foi o que teve maior incidência de casos por milhão de habitantes, tem uma pirâmide etária diferente e amplo contato com o exterior, em razão do turismo.

Em meio às desigualdades acentuadas pela pandemia, o pesquisador elenca um ganho para o grupo de nações de língua portuguesa: o aumento do diálogo virtual, com troca de experiências e informações, entre os membros da CPLP.

Segundo relatórios da cúpula, as medidas da comunidade durante a pandemia incluíram a criação de um centro de informação sobre a Covid; reuniões quinzenais para aumentar a colaboração no tema; seminários virtuais; e o lançamento da plataforma Alimenta CPLP, sobre a crise alimentar agravada pela Covid nos países-membros.

As ações tiveram impacto mais concreto sobretudo nos países menores. O diretor de cooperação da comunidade, Manuel Lapão, informou à Folha que Portugal adquiriu e distribuiu cerca de um milhão de imunizantes para Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Timor Leste.

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