Pensamento mágico e burocracia falha minaram combate à pandemia, diz Niall Ferguson

Historiador britânico discorreu sobre desastres históricos no ciclo Fronteiras do Pensamento

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São Paulo

Mesmo depois do conhecimento acumulado em tantas catástrofes e pandemias ao longo da história, e ainda que pesquisas tenham viabilizado o desenvolvimento de vacinas seguras em tempo recorde, o que impediu uma reação mais eficaz que evitasse a morte de quase 5 milhões de pessoas por Covid-19?

Para o historiador britânico Niall Ferguson, a resposta é uma trágica combinação de desconfiança geral com os imunizantes e burocracia falha. Autor de “Catástrofe - Uma História dos Desastres - Das Guerras às Pandemias - E o Nosso Fracasso em Aprender como Lidar com Eles” (Penguin Press), Ferguson participou do ciclo de palestras Fronteiras do Pensamento nesta quarta (13).

O historiador escocês Niall Ferguson, que participou do ciclo Fronteiras do Pensamento
O historiador escocês Niall Ferguson, que participou do ciclo Fronteiras do Pensamento - Central European University/Divulgação

Para tentar explicar a desconfiança com as vacinas que oferecem um fim à pandemia, o historiador empresta da antropologia e da psicologia o conceito de pensamento mágico, segundo o qual a realidade pode ser traduzida a partir de correlações sem lógica. Na era da disseminação desenfreada de notícias falsas, ele propõe o que chama de "pensamento mágico online".

"Você pode ter a elite científica mais sofisticada do mundo, com professores, pesquisadores e médicos conduzindo trabalhos em várias disciplinas, da virologia à ciência de redes. Se a população permanece cientificamente analfabeta e suscetível ao pensamento mágico e a teorias da conspiração, então todos os seus avanços científicos vão fracassar diante da aceitação pública", diz.

É o que explica o fato de as vacinas, eficazes e com riscos baixos, serem rejeitadas por um quinto dos americanos adultos. A isso se somou a dificuldade de governos de gerir crises, e Ferguson cita também a resposta à crise econômica de 2008. Um ano antes, diz, "era muito claro que o mercado de hipotecas estava descontrolado", mas a situação foi esticada até que bancos inteiros decretassem falência.

Para ele, o Estado "é extremamente bom em produzir planos de 36 páginas para se preparar para desastres como a pandemia, mas não lida bem com crises reais".

A responsabilidade, nesse caso, afirma ele, seria menos de líderes populistas que não souberam conduzir a gestão da pandemia —como Jair Bolsonaro, no Brasil, ou Donald Trump, nos Estados Unidos— e mais de tomadores de decisão em escalas intermediárias. "O erro humano é sempre presente em todo desastre."

Conhecido por opiniões polêmicas, Ferguson ressalta que as quase 5 milhões de mortes devido à doença configuram uma tragédia, mas coloca a Covid-19 em perspectiva histórica para dizer que "é um desastre relativamente menor" em comparação com pestes que assolaram a humanidade —a exemplo da gripe espanhola, no começo do século passado, ou da peste negra, no século 14.

O historiador argumenta que temos uma espécie de memória curta, que nos faz ignorar períodos graves da história, e dá o exemplo de um inverno mortal em 1950 e 1951 no Reino Unido, quando o excesso de mortalidade em relação a anos anteriores (métrica usada hoje para estimar casos subnotificados da Covid) foi mais grave que o da pandemia atual. "Por que ninguém mais se lembra disso hoje em dia? É possível que um esquecimento como esse aconteça com a Covid?", questiona.

Ele defende ainda que é fácil se acostumar a uma nova realidade e esquecer como o mundo era antes —e lembra que já nos acostumamos a regras rígidas de segurança em aeroportos, deixando para trás como era mais simples pegar um avião antes dos atentados terroristas do 11 de Setembro.

Por isso, nas palavras de Ferguson, é preciso que as restrições para a contenção do vírus, como o uso de máscara, testes constantes e distanciamento social, só sejam impostas enquanto são de fato necessárias, sob o risco de nos acostumarmos a essa nova realidade. "Sou um grande defensor de medidas emergenciais apenas para emergências, e é importante reconhecer quando elas estão acabando."

O historiador levanta preocupações sobre a explosão da dívida pública e da inflação na retomada pós-Covid-19 e alerta que os "loucos anos 1920", como se convencionou chamar o período de efervescência cultural e econômica do pós-Primeira Guerra e pós-gripe espanhola, podem virar "os tediosos anos 2020" se formos acometidos por crises econômicas.

Ferguson, por fim, defende que o próximo desastre global pode não ser algo que esperamos hoje e que é perigoso apostar apenas nas mudanças climáticas. Segundo o historiador, elas têm consequências mais lentas do que problemas capazes de gerar impactos urgentes, como uma guerra entre China e EUA.

Um conflito bélico entre superpotências pode envolver grandes ataques cibernéticos, diz ele, que usa o exemplo do apagão dos serviços do Facebook para medir os impactos do problema. "Imagine se toda a internet caísse não só por seis horas, mas por seis dias. Um grande ciberataque é muito provável."

Crítico do que chama de radicais ambientalistas, Ferguson defende que sofremos de uma miopia. "Queremos falar de mudanças climáticas porque está na moda. Mas 2020 nos lembrou que há desastres que ocorrem muito mais rapidamente."

Cientistas apontam, porém, que as mudanças climáticas já têm impactos reais. Pesquisa publicada em maio na revista Nature mostrou que 37% das mortes por consequência do calor de 1991 a 2018 foram causadas pelo aquecimento global. E estudo da Organização Meteorológica Mundial apontou que, em cinco décadas, de 1970 a 2019, 2 milhões de pessoas morreram devido a eventos climáticos extremos.

Ainda que a capacidade de resposta dos sistemas de saúde tenha melhorado —o que leva a menores cifras de mortos a cada década—, a ocorrência desses eventos se multiplicou por cinco.

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