Descrição de chapéu África

Militares do Sudão dão golpe de Estado e prendem premiê e gabinete civil

Militares estão posicionados para conter manifestações pró-democracia; ao menos 7 morreram nos atos

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Cartum (Sudão) | Reuters

Pouco mais de dois anos após o Sudão iniciar uma transição democrática e um ano após um acordo de paz ser assinado com grupos rebeldes, um golpe militar se desenrola no país da África Oriental. O premiê Abdallah Hamdok foi detido e transferido para um local não revelado por uma força militar nesta segunda (25).

A maioria dos membros do gabinete civil e um grande número de líderes partidários pró-governo também foram presos na capital, Cartum. Emissoras de rádio e televisão foram invadidas e seus funcionários, detidos, de acordo com o Ministério da Informação.

Horas depois, o tenente-general Abdel Fattah al-Burhan, chefe do Conselho Soberano sudanês —órgão de governo instituído em 2019 para preparar o país para as eleições democráticas—, decretou estado de emergência em todo o território e a dissolução do conselho.

População sai às ruas da capital sudanesa, Cartum, para protestar contra golpe militar - 25.out.21/AFP

De acordo com Burhan, os militares governarão o país até a realização de eleições em julho de 2023. "Garantimos o compromisso das Forças Armadas de completar a transição democrática até que entreguemos o poder a um governo civil eleito", acrescentou o general.

Durante o pronunciamento, sem dar muitos detalhes, Burhan tentou justificar a medida afirmando que o Sudão passa por uma "ameaça real e [por] um perigo para os sonhos da juventude e para a esperança de construir uma nação cujas características estão começando a emergir".

O Ministério da Informação, que aparenta ainda ser dirigido por membros do governo civil, disse que o primeiro-ministro foi inicialmente colocado em prisão domiciliar pelos militares, que o pressionaram a divulgar uma "declaração pró-golpe".

Com a negativa de endossar a operação, o político, ex-funcionário das Nações Unidas, foi transferido para um local desconhecido. Mais tarde, o órgão descreveu a ação militar como crime.

Pouco após a meia-noite (19h de domingo, no horário de Brasília), o acesso à internet foi interrompido no país. A prática se tornou comum para sufocar manifestações dissidentes no período em que o ditador Omar al-Bashir esteve no poder —ele foi deposto, em abril de 2019, depois de 30 anos liderando o país com mão de ferro. O blecaute mais longo durou cerca de dois meses no início daquele ano.

O aeroporto de Cartum foi fechado nesta segunda, e os voos internacionais foram suspensos, informou o canal de TV Al Arabiya, com sede em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos.

O Exército sudanês e forças paramilitares foram posicionados em toda a capital, restringindo a movimentação de civis, enquanto manifestantes carregando a bandeira nacional queimaram pneus em diferentes áreas da cidade.

A Associação de Profissionais do Sudão (SPA), que reúne sindicatos do país, convocou uma greve geral. "Pedimos às massas que saiam às ruas e as ocupem, fechem todas as estradas com barricadas, façam uma greve geral dos trabalhadores, não cooperem com os golpistas e usem a desobediência civil para enfrentá-los", disse em um comunicado.

Um funcionário do Ministério da Saúde disse que ao menos sete pessoas morreram em consequência de ferimentos a bala e cerca de 140 ficaram feridas nos protestos. Funcionários do Banco Central anunciaram que entrariam em greve imediata, informou o Ministério do Interior.

Além do premiê, estão entre as figuras detidas os ministros da Indústria e da Informação, Ibrahim al-Sheikh e Hamza Baloul, respectivamente; Mohammed al-Fiky Suliman, membro do Conselho Soberano; Faisal Mohammed Saleh, assessor de comunicação do premiê; e Ayman Khalid, governador do estado de Cartum, onde fica a capital.

A instabilidade política no país africano, que parecia caminhar rumo a uma transição democrática, aumentou nos últimos meses. Em meados de setembro, o Sudão assistiu a uma tentativa de golpe fracassada, que autoridades atribuíram a soldados leais ao ditador Omar al-Bashir.

Na quinta (21), grandes protestos ocuparam as ruas do país em defesa da democracia, e manifestações menores ocorreram em diversos bairros nos dias seguintes. Repórteres da agência de notícias Reuters estimaram o número de participantes em centenas de milhares —somente na capital, foram mais de 20 mil.

O principal ponto de tensão está justamente nos mecanismos criados para fazer a transição. Meses após a deposição do regime ditatorial, o Conselho Soberano foi estabelecido com o objetivo de desmantelar o aparato político e financeiro da gestão de Bashir e preparar o terreno para a construção de novas instituições democráticas. Composto por seis civis e cinco militares, o órgão se tornou a autoridade executiva máxima do Sudão.

Para colocar a transição em prática, o poder seria compartilhado: os militares chefiariam o órgão por 21 meses, e então os civis assumiriam o comando por 18 meses, até a realização de eleições livres. A passagem de bastão, prevista para os meses de abril e maio no calendário inicial, porém, ainda não aconteceu e estava pouco clara.

Uma coalizão de grupos rebeldes aliou-se aos militares, que tentavam dissolver o gabinete e acusavam os partidos civis de má administração e monopolização do poder. As lideranças civis, por sua vez, afirmavam que as tentativas equivaliam a golpes e que os militares pretendiam instalar um regime que pudessem manter sob seu controle.

Em setembro, o tenente-general Burhan, que chefiava o conselho, disse em discursos televisionados que os militares entregariam o poder apenas a um governo eleito pelo povo sudanês, dando indícios de um descumprimento do acordo de transição forjado há dois anos.

Além da tensão política, o Sudão vive uma profunda crise econômica, marcada por inflação recorde e escassez de bens básicos, que começava a dar sinais de abrandamento em meio aos fluxos de ajuda internacional —países ocidentais, porém, alertaram que qualquer tomada de controle militar poderia colocar em risco a assistência.

Os Estados Unidos se disseram "profundamente alarmados com relatos de uma tomada militar do governo de transição". Segundo informações do jornal The New York Times, o país é um dos maiores doadores ao Sudão, com mais de US$ 377 milhões (R$ 2,1 bilhões) enviados em ajuda humanitária.

No perfil oficial do escritório americano para a África, o enviado especial dos EUA Jeffrey Feltman, que se reuniu com o premiê sudanês no último sábado (23), disse que um golpe "iria contra a declaração constitucional e as aspirações democráticas do povo do Sudão e é totalmente inaceitável".

"Como dissemos repetidamente, qualquer mudança no governo de transição pela força coloca em risco a assistência dos EUA", completou.

Na última semana, frente à repressão violenta contra manifestantes que pediam a aceleração da transição democrática, o Comitê de Relações Exteriores do Senado americano se manifestou sobre o Sudão. Em comunicado assinado pelo republicano Jim Risch (Idaho) e pelo democrata Chris Coons (Delaware), a comissão disse que o estabelecimento da democracia sudanesa era uma prioridade americana na África, já demonstrada pela ajuda financeira e pela retirada do país da lista de patrocinadores do terrorismo.

"É vital que as forças de segurança respeitem e protejam o direito dos cidadãos ao protesto pacífico e, o mais importante, que líderes sudaneses e as partes interessadas continuem a trabalhar por meio do mecanismo acordado —uma transição liderada por civis", diz a nota dos senadores. "Os EUA devem continuar trabalhando com o governo do Sudão para dominar as forças malignas que procuram minar a transição do país."

Horas após o início do golpe, o democrata Bob Menendez (Nova Jersey), que preside o Comitê de Relações Exteriores, disse que "a tomada do aparato estatal pelos militares sudaneses é completamente inaceitável e terá consequências duradouras no que diz respeito às relações entre os EUA e o Sudão".

Mais tarde, o porta-voz do Departamento de Estado americano, Ned Price, anunciou a suspensão de um pacote de US$ 700 milhões (R$ 3,8 bilhões), cuja finalidade era apoiar a transição democrática do país com fundos emergenciais.

Diversos órgãos e líderes internacionais também se manifestaram pedindo que a força militar liberte o premiê Abdallah Hamdok. Em comunicado, o chefe de política externa da União Europeia (UE), Josep Borrell, disse que "as ações dos militares representam uma traição à revolução, à transição e aos pedidos legítimos do povo sudanês por paz, justiça e desenvolvimento econômico".

O secretário-geral das Nações Unidas, o português António Guterres, pediu a libertação imediata dos detidos ilegalmente e afirmou que "deve haver total respeito à Constituição para proteger a transição política duramente conquistada". "A ONU continuará ao lado do povo sudanês", acrescentou.

A União Africana, da qual o país faz parte, pediu respeito aos direitos humanos. "Apelo ao reatamento imediato das consultas entre civis e militares e reafirmo que o diálogo e o consenso são o único caminho para salvar o país e a sua transição democrática", disse o presidente do bloco, Moussa Faki Mahamat.

O presidente francês, Emmanuel Macron, também se manifestou, afirmando que o país "condena veementemente a tentativa de golpe no Sudão". "Expresso meu apoio ao governo de transição do Sudão e apelo à libertação imediata e ao respeito pela integridade do primeiro-ministro e dos membros civis do governo", escreveu em um tuíte.


Cronologia da história política do Sudão

  • 1956: Sudão se torna independente do domínio da Inglaterra e do Egito, que comandavam o país desde o fim do século 19
  • 1958: General Ibrahim Abbud dá o primeiro golpe da República do Sudão, dissolvendo partidos políticos e fechando jornais
  • 1962: Estouram conflitos entre o norte do país, mais simpático ao governo, e o sul, liderado pela guerrilha Anya Nya
  • 1964: Abbud renuncia em meio à pressão crescente
  • 1969: Coronel Gaafar el-Nimeiri lidera novo golpe militar e assume comando do país
  • 1971: Tentativa frustrada de golpe comunista fortalece El-Nimeiri
  • 1972: Tratado de Adis Abeba garante autonomia ao sul do país, governado pelo Anya Nya, e põe fim à primeira guerra civil sudanesa
  • 1983: Em meio ao crescente fundamentalismo, Nimeiri impõe a sharia (lei islâmica estrita); coronel revoga termos do tratado e volta a dividir o sul em províncias, dando início a nova guerra civil
  • 1985: Nimeiri é deposto por conselho militar, que realiza eleições no ano seguinte
  • 1989: Em novo golpe militar, general Omar al-Bashir assume o poder, lidera país com mão de ferro e reintroduz a sharia, que prevê castigos físicos
  • 1996: Bashir é eleito presidente; em 2000, é reeleito
  • 1998: EUA disparam mísseis contra farmacêutica na capital Cartum, afirmando que local fabricava armas químicas
  • 1999: Bashir dissolve Assembleia Nacional em meio a disputa de poder com presidente do Legislativo
  • 2003: Milícias rebeldes se insurgem em Darfur, região de população não árabe no oeste do país
  • 2004: Regime reage em Darfur e Exército ataca população, provocando crise humanitária e onda de refugiados; Colin Powell, então secretário de Estado dos EUA, descreve mortes como genocídio
  • 2005: Novo acordo de paz restabelece autonomia no sul do país, e ex-líder rebelde, Salva Kiir assume Vice-Presidência
  • 2007: Conselho de Segurança da ONU aprova missão de paz em Darfur; crise abre conflito diplomático com o Chade
  • 2009: Tribunal Penal Internacional (TPI) pede prisão de Bashir por crimes de guerra e crimes contra a humanidade em Darfur
  • 2010: Bashir é eleito novamente presidente, em votação contestada; TPI expede segundo mandado de prisão, agora por genocídio
  • 2011: Sudão do Sul ganha independência após votação popular; Salva Kiir torna-se presidente do novo país
  • 2015: Bashir vence, com 95% dos votos, eleição novamente contestada
  • 2019: Bashir decreta estado de emergência e suspende governadores após protestos em massa; em abril, militares depõem ditador após 30 anos no poder e preparam governo de transição
  • 2020: Rebeldes remanescentes de Darfur assinam acordo de paz com governo
  • 2021: Em meio a disputas por poder, militares prendem primeiro-ministro, declaram estado de emergência e afirmam que vão governar até eleições de 2023
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