União Europeia relaxa regra que criava 'guerra das linguiças' no brexit

Bloco faz novas propostas para facilitar entrada de mercadorias na Irlanda do Norte sem ameaçar acordo de paz na ilha irlandesa

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Bruxelas

No que depender da União Europeia (UE), as linguiças produzidas na Grã-Bretanha poderão viajar sem entraves para a Irlanda do Norte. A liberação integra uma nova oferta do bloco para tentar pacificar a parte mais controversa do brexit, o chamado Protocolo da Irlanda do Norte.

O documento tenta evitar que o divórcio entre UE e Reino Unido abale a paz obtida em 1998 na Irlanda do Norte, após décadas de confrontos sangrentos entre norte-irlandeses unionistas —que querem continuar sendo britânicos— e os que querem se integrar à República da Irlanda.

O problema é que o brexit retirou o Reino Unido do mercado comum europeu, e produtos que cruzam as fronteiras entre os antigos parceiros ficam sujeitos a aduana e inspeções sanitárias.

Grande placa amarela com letras pretas dizendo Boris Johnson, tire as mãos do acordo da sexta-feira santa, nada de fronteiras na Irlanda
Placa imita layout de comunicações do governo britânico para protestar contra o risco de uma fronteira dura dentro da ilha Irlandesa, perto de Newry, na Irlanda do Norte - Clodagh Kilcoyne - 13.out.21/Reuters

Como a Irlanda está na UE e a Irlanda do Norte não, o divórcio exigiria criar uma “fronteira dura” na ilha irlandesa, o que poderia reanimar um conflito ainda latente entre os antigos rivais da Irlanda do Norte.

A fórmula de compromisso entre as duas partes foi manter a Irlanda do Norte dentro do mercado único de bens do bloco europeu. A fiscalização passaria a ser feita na fronteira marítima entre a Grã-Bretanha —que inclui Inglaterra, Escócia e País de Gales— e a ilha irlandesa.

Apesar de ter assinado o acordo há dois anos, o premiê britânico, Boris Johnson, não o cumpriu, e mais de uma vez o Reino Unido ameaçou simplesmente ignorar os compromissos.

Na última terça, o ministro britânico do brexit, David Frost, havia afirmado que seria necessário um novo protocolo, uma hipótese refutada pelo responsável pelas negociações pelo lado europeu, o vice-presidente da Comissão Europeia, Maros Sefcovic (pronuncia-se Márosh Sheftchovitch).

Apresentada nesta quarta, a nova oferta da UE flexibiliza várias partes do acordo, em troca de mais acesso a dados que permitam a fiscalização do que sai da Grã-Bretanha e entra na Irlanda do Norte. A proposta europeia tem quatro partes: 1) alimentos e regulação fitossanitária, 2) aduanas, 3) medicamentos e 4) participação norte-irlandesa nas decisões.

O primeiro item é o que traz alívio à guerra das linguiças. O alimento, assim como almôndegas, croquetes de frango ou outros integrantes da categoria “produto resfriado à base de carne”, só pode ser importado pela UE se estiver congelado.

Como a Irlanda do Norte passou a estar no mercado comum, o Reino Unido precisava fazer o mesmo com as linguiças que enviasse para lá. Regras fitossanitárias e inspeções congestionaram portos e deixaram prateleiras das lojas vazias, levando a UE a suspender duas vezes a implantação dessa parte do acordo desde dezembro do ano passado.

Agora, a Comissão Europeia pretende liberar de inspeções e burocracia cerca de 80% dos produtos alimentícios: “Um caminhão carregando cem produtos diversos —verduras, ovos, leite, carne— precisará de apenas um certificado, em vez de cem”.

A contrapartida é que as mercadorias tenham um rótulo que marque claramente que são destinados apenas ao Reino Unido, para evitar sua entrada indevida no mercado comum europeu sem cumprir as regras da UE.

Medida semelhante está sendo proposta para medicamentos: os laboratórios instalados na Grã-Bretanha poderão continuar fornecendo livremente para a Irlanda do Norte, desde que os produtos estejam claramente rotulados para evitar que cheguem ao mercado europeu.

As regras de aduana serão facilitadas para praticamente todas as mercadorias produzidas na Grã-Bretanha que se destinam apenas à Irlanda do Norte. Por exemplo, na remessa de autopeças da Inglaterra para uma empresa norte-irlandesa, a burocracia seria cortada pela metade.

Para isso, é preciso que o Reino Unido cumpra a promessa de construir postos de controle e permitir acesso em tempo real a todos os elos da cadeia de produção, afirmou Sefcovic.

O último ponto é político: abrir espaço para que partes interessadas norte-irlandesas possam participar dos debates e negociações relativos ao protocolo. A ideia é dar assento ao governo nacional no conselho do grupo de trabalho e criar uma câmara de debate entre a Assembleia local e a UE.

O plano apresentado nesta quarta não aborda o papel do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a Suprema Corte do bloco, apontado até a semana passada como inaceitável por Frost. Pelo protocolo, a corte pode decidir sobre questões da legislação europeia na Irlanda do Norte, ou seja, em caso de desavenças com o Reino Unido sobre uma lei da UE, a decisão seria do TJUE.

O bloco europeu quis deixar claro que suas medidas foram feitas para beneficiar a população da Irlanda do Norte e manter a estabilidade no país, não para ceder às pressões do governo de Boris Johnson.

Após a divulgação da proposta, Frost se declarou disposto a prosseguir com as conversas sem “linhas vermelhas” (cláusulas inegociáveis). Os ex-parceiros devem voltar às negociações nas próximas semanas.

Segundo membros da comissão envolvidos no trabalho, a UE “espera pelo melhor, mas está se preparando para o pior” —se o Reino Unido se recusar a fechar um novo acordo ou romper unilateralmente o pacto, pode detonar uma sequência de ações judiciais ou mesmo uma guerra comercial.

Na terça (12), o clima ficou pesado entre os governos irlandês e britânico, após uma sequência de posts em rede social do ex-guru de Boris, Dominic Cummings. Segundo o ex-conselheiro, o premiê aceitou o protocolo em 2019 apenas para aumentar suas chances na eleição de dezembro. De acordo com Cummings, Boris “nunca teve uma ideia do que o acordo que ele assinou significava”.

Em resposta, o vice-primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, afirmou que nenhum país deveria se arriscar a fazer acordos com o Reino Unido até que ele cumpra o que prometeu no Protocolo da Irlanda do Norte.

Segundo Varadkar, que era o primeiro-ministro da Irlanda em 2019, os comentários de Cummings indicam que o premiê britânico agiu de má-fé. “Certamente a mensagem deve chegar a todos os países ao redor do mundo de que este é um governo britânico que não necessariamente cumpre sua palavra e não necessariamente honra os acordos que faz”, disse ele à mídia irlandesa.

entenda a polêmica

O que é o Protocolo da Irlanda do Norte?

Foi um acordo assinado entre União Europeia e Reino Unido para evitar a necessidade de uma fronteira “dura” ---com posto de controles e checagens--- dentro da ilha irlandesa, entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte (uma das nações britânicas).

Por que sem o protocolo precisaria haver uma fronteira “dura”?

Porque o brexit retirou o Reino Unido do mercado único europeu, o que cria fiscalizações aduaneiras e de regras sanitárias e fitossanitárias dos produtos que entram na UE ---no caso, dos que passassem da Irlanda do Norte, que é britânica, para a Irlanda, que integra o bloco europeu.

Qual o problema de uma fronteira na ilha irlandesa?

Ela colocaria em risco o acordo de paz estabelecido em 1998, após décadas de conflito violento entre norte-irlandeses que defendiam a integração com a República da Irlanda, de maioria católica, e grupos que defendiam a manutenção da nação no Reino Unido.

Como o protocolo resolve o problema?

A Irlanda do Norte permaneceu dentro do mercado único e da união aduaneira europeia em questões como legislação sobre mercadorias, regras sanitárias, regras sobre produção e comercialização agrícola, alguns tributos e regras sobre auxílios estatais. Dessa forma, seus produtos podem entrar livremente na República da Irlanda, sem necessidade de fiscalização.

Qual é o principal entrave?

Pelo acordo assinado, produtos fabricados na Grã-Bretanha (Inglaterra, Escócia e Gales) que se destinassem à Irlanda do Norte passavam a ser fiscalizados, já que teriam potencial de entrar no mercado comum europeu —pois passariam para a República da Irlanda sem controles. Segundo britânicos e norte-irlandeses, isso estava provocando custos desnecessários e prejudicando o abastecimento na Irlanda do Norte.

Como a proposta da UE resolve o problema?

O bloco europeu aborda quatro tópicos que eram alvos de queixas pelos norte-irlandeses:

  1. Questões sanitárias e fitossanitárias basicamente alimentos: a proposta simplifica e reduz controles para produtos destinados ao varejo, cortando cerca de 80% das inspeções feitas hoje. Como contrapartida, quer que o Reino Unido construa os postos de controle prometidos na fronteira marítima e permita o acesso a dados em tempo real sobre todos os elos da cadeia de abastecimento, para que a origem das mercadorias possa ser verificada. Os produtos também devem ter rótulo indicando que são para venda apenas no Reino Unido.
  2. Alfândega: um esquema que reduz a burocracia para bens sem risco de entrar no mercado comum será ampliado para mais produtos e empresas, principalmente pequenas e médias, desde que o Reino Unido aumente as condições de fiscalização e monitoramento.
  3. Remédios: empresas farmacêuticas da Grã-Bretanha podem abastecer normalmente a Irlanda do Norte com medicamentos autorizados pelos reguladores britânicos. Para vigorar, essa proposta exigirá que a UE altere as suas próprias regras sobre medicamentos.
  4. Governança: autoridades, sociedade civil e empresas norte-irlandesas participarão de grupos de trabalho para a implementação do protocolo e de reuniões dos comitês especializados. Haverá uma aproximação entre a Assembleia da Irlanda do Norte e a Assembleia de Parceria Parlamentar UE-Reino Unido

Quais são os próximos passos?

UE e Reino Unido devem voltar à mesa de negociações. O objetivo do bloco europeu é chegar a um compromisso final até o fim deste ano.

O que acontece se não houver acordo?

O Reino Unido já aventou a possibilidade de acionar o artigo 16 do protocolo, que anula o documento. Se isso acontecer, o bloco europeu pode responder com uma série de ações na Justiça e com retaliações comerciais —um dos setores mais visados é o automobilístico, no qual um aumento de tarifas teria grande impacto para os britânicos.

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