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Veneza começa a rastrear turistas para aliviar superlotação

Há tempos, moradores reclamam de multidões que tiram o 'romantismo' da cidade

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Emma Bubola
Veneza | The New York Times

Quando a pandemia de coronavírus afastou visitantes, alguns venezianos se permitiram sonhar com uma cidade diferente –uma que pertencesse a eles tanto quanto aos turistas que os expulsam de suas praças, ruelas de pedra e até de seus apartamentos.

Na cidade aquietada, a trilha sonora dominante de repente passou a vir do repique dos sinos de seus cem campanários, do som das águas dos canais e do dialeto veneziano.

Os navios de cruzeiro que despejavam milhares de visitantes e geravam ondas que fustigavam a cidade, que está afundando, desapareceram e depois foram banidos. Agora, porém, o prefeito está levando o controle de multidões para um novo nível, propondo soluções de alta tecnologia que preocupam mesmo quem há muito tempo quer devolver Veneza a seus habitantes.

Turistas em esquina de Veneza no começo de setembro - Alessandro Grassani - 13.set.21/The New York Times

Os líderes da cidade estão obtendo os dados de celulares de turistas, sem o conhecimento deles, e usando centenas de câmeras de vigilância para monitorá-los e impedir a formação de aglomerações.

Para o próximo verão italiano, pretendem instalar portões nos pontos principais de entrada na cidade. Turistas que vêm para passar um dia apenas terão que reservar a data com antecedência e pagar uma taxa para entrar. Se pessoas demais quiserem entrar, algumas serão barradas.

O prefeito Luigi Brugnaro é conservador e favorável aos negócios. Ele e seus aliados dizem que a meta é criar uma cidade mais habitável para os venezianos, que se sentem sitiados. “Ou somos pragmáticos ou vivemos no mundo dos contos de fada”, diz Paolo Bettio, diretor da Venis, que lida com os dados.

Mas muitos moradores veem os planos como algo distópico ou um golpe publicitário. “É como declarar de uma vez por todas que Veneza não é uma cidade, mas um museu”, diz o fotógrafo Giorgio Santuzzo, 58.

Por muitos critérios, Veneza já é uma cidade morta. Muitos venezianos ficam frustrados por terem que sair da cidade para comprar roupa, já que as lojas de suvenires tomaram o lugar dos estabelecimentos que atendem à população residente.

Estão fartos de ouvir turistas perguntando como chegar à praça São Pedro —que fica em Roma— e de políticos que arrancam dinheiro do turismo enquanto ignoram necessidades dos moradores. Mesmo assim, dizem, as soluções high-tech não vão lhes devolver uma Veneza mais autêntica. Em vez disso, o receio é que roubem parte do romantismo que a cidade ainda tem.

Numa manhã recente, o casal espanhol Laura Iglesias e Josép Paino rendera-se ao fascínio da cidade. “Veneza é o lugar perfeito para você se perder”, comentou Iglesias, com um suspiro. Mas Veneza não os perdera de vista.

Acima de suas cabeças, uma câmera de alta definição filmava cerca de 25 quadros por segundo.

Softwares rastreavam a velocidade e a trajetória do casal. E, numa sala de controle a alguns quilômetros de distância, funcionários da prefeitura examinavam dados telefônicos colhidos de Iglesias, Paino e praticamente todas as pessoas em Veneza naquele dia. O sistema é projetado para registrar a idade das pessoas, sexo, país de origem e sua localização anterior.

“Sabemos minuto a minuto quantas pessoas estão passando por cada ponto e para onde estão indo”, diz Simone Venturini, diretor de turismo de Veneza, acompanhando as oito telas na sala de controle que mostravam quadros da praça São Marcos em tempo real. “Temos controle total da cidade."

As câmeras foram instaladas originalmente para monitorar a criminalidade e pessoas que conduziam suas embarcações de modo imprudente. Agora, também cumprem a função de rastrear turistas.

Os funcionários dizem que os dados de localização dos telefones também vão alertá-los para que possam evitar o tipo de multidão que converte a travessia das pontes venezianas mais famosas em luta diária.

Além disso, estão tentando determinar quantos dos turistas são visitantes de um dia, que passam pouco tempo e gastam pouco dinheiro.

Uma vez que tenham conseguido identificar esses padrões, a informação será usada para controlar o uso dos portões e o sistema de reservas. Em determinadas datas, quando se prevê a chegada de multidões, o sistema vai sugerir itinerários ou datas alternativos. E nos dias em que se prevê movimento intenso, a taxa de ingresso será reajustada, podendo chegar a 10 euros (R$ 63).

A prefeitura rejeita críticas que expressam reservas quanto à invasão de privacidade, dizendo que os dados telefônicos são colhidos de modo anônimo. A prefeitura está adquirindo as informações sob um contrato com a empresa telefônica italiana Tim, que, como muitas outras, está capitalizando sobre o aumento da demanda de dados por parte da polícia e de empresas de marketing, por exemplo.

Sala de controle de câmeras que monitoram turistas em Veneza - Alessandro Grassani - 13.set.21/The New York Times

Luca Corsato, gerente de dados em Veneza, diz que a coleta dos dados levanta questões éticas, porque os usuários dos telefones provavelmente não fazem ideia de que a prefeitura pudesse comprar seus dados. Segundo ele, prefeituras de outras cidades adquiriram dados de localização telefônica para monitorar multidões em eventos específicos, mas não para esse uso “maciço e constante” para monitorar turistas.

“É perigoso passar a ideia de que todos que entram em Veneza são rotulados e arrebanhados.”

Alguns turistas lamentam a perda de privacidade e de algo menos palpável. “O romantismo de Veneza desapareceu devido às multidões”, disse o holandês Martin Van Merode, 32, que fotografava a basílica de São Marcos com seu smartphone. Mas vigilância eletrônica, para ele, “é menos romântica ainda”.

Mesmo os venezianos que rejeitam os planos reconhecem, porém, que eles têm aspectos positivos.

“Não gosto da ideia de ser constantemente monitorado”, diz o garçom Cristiano Padovese. “Mas se isso nos ajudar a lucrar com o turismo, que seja.”

A proliferação de pousadas e hospedagens do tipo Airbnb deixou os aluguéis em Veneza fora do alcance dos moradores locais. De mais de 170 mil pessoas na década de 1950, o número de residentes no centro histórico de Veneza caiu para cerca de 50 mil hoje. Nos dias recentes, operadores da sala de controles disseram que o número de turistas no centro continuou a superar o de moradores.

Muitos venezianos concordam que algo precisa mudar. Alguns aproveitaram a pandemia para propor ideias, entre as quais habitação subsidiada para jovens e empreendedores. Isso, para eles, é muito diferente e muito menos invasivo que a visão que o prefeito Brugnaro quer implementar com seu projeto dos portões.

O fotógrafo Santuzzo diz que a iniciativa é um esforço para manter Veneza dependente dos turistas —dos mais ricos, com condições de passar a noite e cuja entrada não será limitada. Associações de lojistas reclamam que Veneza será “engaiolada”. E jornais alertam que a cidade pode ser convertida “num Big Brother ao ar livre”.

“Eu me sentiria ainda mais como se vivesse numa cidade que não é uma cidade”, diz a aposentada Giorgia Santuzzo. “Vou mandar meus amigos pagarem para virem me visitar?”

Talvez ela não tenha outra opção. Como os turistas que vêm para passar a noite, parentes próximos de venezianos não precisarão pagar a taxa de ingresso, segundo a prefeitura –mas seus amigos, sim.

Turistas em Veneza
Turistas em Veneza em 2019, antes da pandemia - 1.mar.19/via Global Media

Tradução de Clara Allain

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