Descrição de chapéu The New York Times

'Armas fantasmas': kits de armas de fogo alimentam epidemia de violência nos EUA

Armamentos sem número de série e montados a partir de peças separadas se tornam opção a quem não pode, por lei, comprar armas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Glenn Thrush
Chula Vista (Califórnia) | The New York Times

O som de um disparo acordou os pais de Max Mendoza pouco após o amanhecer. Eles saíram do quarto correndo e encontraram o filho de 12 anos encostado no sofá com os olhos arregalados de dor, pavor e espanto. "É de verdade", sussurrou Max com a mão apertada contra o peito, parecendo assombrado por uma arma que parecia de brinquedo e que poderia acabar com sua vida em um instante.

Mas foi o que ela fez. Investigadores na cidade ao sul de San Diego ainda tentam determinar exatamente o que aconteceu naquela manhã de julho: se Max, que cursava a sétima série, atirou em si mesmo acidentalmente ou se um amigo dele de 15 anos disparou a arma quando a mostrava a ele.

Arma fantasma fotografada no escritório da Procuradoria de San Francisco
Arma fantasma fotografada no escritório da Procuradoria de San Francisco - Kelsey McClellan/The New York Times

O que é certo é o tipo de arma que matou Max. Os modelos "fantasmas" são armas de fogo não rastreáveis, sem número de série, montadas a partir de peças compradas online. Cada vez mais estão se tornando a opção de acesso mais fácil para pessoas nos EUA impedidas por lei de adquirir ou possuir um instrumento do tipo.

O submundo criminoso há muito tempo se vale de armamento roubado com números de série raspados, mas os modelos fantasmas representam um upgrade digital disso. Estão especialmente presentes nos estados costeiros de maioria democrata e que têm legislação forte de controle nessa área.

Em nenhum lugar isso é mais real que na Califórnia, onde a presença desses itens já alcança proporções epidêmicas, segundo autoridades policiais em Los Angeles, Oakland, San Diego e San Francisco. Nos últimos 18 meses, entre 25% e 50% das armas de fogo recuperadas em cenas de crimes foram fantasmas. E a grande maioria dos suspeitos com elas era legalmente proibida de possuir uma.

"No mês que vem completarei 30 anos na polícia. Até hoje, nunca vi qualquer coisa assim", diz o tenente Paul Phillips, do departamento de polícia de San Diego. Ele afirma que até o início de outubro o departamento já havia recuperado quase 400 armas fantasmas —o dobro do total de 2020.

A polícia não sabe ao certo por que o uso vem crescendo tanto. Mas diz acreditar que é devido a uma tecnologia nova e destrutiva que ganha presença no mercado com a adesão de compradores. Isso não está acontecendo só na Costa Oeste dos EUA. Desde janeiro de 2016, autoridades policiais locais e federais já confiscaram 25 mil itens do tipo.

Os modelos fantasmas e a indústria de nicho que os produz se valem de uma brecha na regulamentação federal: as peças usadas para montar "armas de fogo de fabricação privada" são classificadas como componentes, não como armas.

Assim, os compradores online não precisam passar por verificação de antecedentes nem registrar sua compra. Por isso mesmo elas atraem pessoas não autorizadas a possuir armamento, incluindo criminosos, agressores domésticos sujeitos a ordens de proteção, pessoas com doenças mentais e menores de idade, como o adolescente que levou seu modelo ao apartamento de Max Mendoza, segundo a polícia.

O fechamento dessa lacuna é o objetivo de novas regulações anunciadas pelo presidente Joe Biden. Basicamente, elas tratariam os modelos fantasmas como armas de fogo tradicionais, exigindo que seus componentes principais trouxessem números de série, impondo a verificação de antecedentes e obrigando compradores online a retirar os produtos em lojas licenciadas pelas autoridades federais.

Autoridades na Califórnia acham que as regras vão ajudar a impedir o acesso de bandidos e crianças a armas fantasmas. "Sem dúvida vai acabar com alguns dos problemas mais evidentes", diz o promotor público de Los Angeles Mike Feuer, que processa uma importante fabricante de componentes desses modelos.

Mas as normas, que provavelmente serão contestadas na Justiça por entidades de defesa do direito às armas de fogo, não devem ser implementadas até o início de 2022. E organizações que defendem o controle no setor questionam a firmeza da fiscalização dos reguladores federais.

E mais: embora as regras propostas devam criar uma série de obstáculos legais, autoridades policiais dizem que os canais ilegais de venda de peças certamente vão se adaptar e prosperar. Há um excedente grande de componentes em circulação, e, ao mesmo tempo, a disponibilidade crescente de impressoras 3D, capazes de criar componentes de armas, abriu uma nova fonte irregular de itens ilegais.

A epidemia parece estar atingindo jovens de maneira desproporcional, como compradores, perpetradores e vítimas. Dois anos atrás, um estudante de 16 anos entrou num colégio em Los Angeles e matou dois adolescentes com uma pistola semiautomática calibre 45 montada com peças de um kit, antes de voltá-la contra si mesmo. Esse caso, mais que qualquer outro, chamou a atenção nacional para a questão.

Uma lacuna mortal

O debate travado em Washington há décadas sobre o controle de armas trata da regulamentação dos modelos tradicionais. Os tipos fantasmas impõem uma pergunta mais primordial: o que faz uma arma de fogo ser uma arma de fogo? Todo armamento semiautomático consiste em duas partes principais: o "slide" superior móvel, que fica no cano, e o "receptor", ou armação.

Pela legislação federal, qualquer armação ou receptor considerado 80% acabado é uma arma de fogo funcional, sujeita às mesmas regras que uma completamente montada. Se for menos de 80% acabada, não está sujeita às mesmas salvaguardas federais.

O Escritório de Álcool, Tabaco, Armas e Explosivos (ATF) avalia cada componente individual. Mas críticos acusam a agência de se omitir de investigar a fundo as empresas que vendem kits com tudo o que é necessário para a montagem rápida de um modelo fantasma. "Acho que muitos de nós pensávamos que ainda teríamos dez anos para enfrentar esse problema, quando na realidade foram apenas dois", afirma David Chipman, ex-agente do ATF indicado por Biden para chefiar a agência, mas que teve seu nome tirado do páreo em setembro devido à oposição acirrada do lobby do setor.

Chipman havia prometido priorizar a questão das fantasmas. O fracasso de sua indicação levou os proponentes do controle de armas a questionar o empenho do ATF em implementar as novas regras.

Apesar disso, o ATF colaborou com polícias locais em dezenas de blitze para apreender armas fantasmas e recentemente investiu contra a empresa Polymer80, de Nevada, líder do setor, cujos produtos representam a maioria dos itens encontrados em cenas de crimes na Califórnia em 2019.

A empresa vende uma grande gama de componentes online, mas o ATF concentrou sua atenção sobre um dos seus kits mais procurados: o "Buy, Build and Shoot" (comprar, montar e atirar), de US$ 590 (R$ 3.200) e que continha quase tudo para fabricar uma pistola funcional no estilo da Glock.

Em dezembro, o ATF invadiu a sede da Polymer perto de Reno, acusando a empresa de não ter submetido seus kits à aprovação dos reguladores. A operação ainda não resultou em acusações criminais. Mas a Polymer parou de vender os kits.

Violência

O professor secundário aposentado Steven R. Ely, 69, nunca ouvira falar em armas fantasmas até quase ser morto por uma. Pouco após as 22h de 24 de abril, ele virou uma esquina no bairro Gaslamp, em San Diego, ouviu quatro ou cinco disparos e sentiu alguma coisa atingindo o lado direito de seu corpo. Ele viu uma mancha vermelha que se espalhava. Seus joelhos cederam. Ele passaria semanas no hospital.

Ely foi uma das vítimas de uma explosão de violência que começou, segundo investigadores, quando um homem chamado Travis Sarreshteh, 32, aproximou-se de um manobrista de hotel e atirou nele sem aviso com uma pistola Polymer80. Justice Boldin, 28, teve morte quase instantânea.

Então Sarreshteh –que se declarou não culpado de homicídio— topou com um grupo de amigos. Ele se virou e atirou, ferindo dois dos homens levemente, segundo a polícia. Um terceiro foi ferido no braço, nos pulmões, no baço e no estômago. Ely provavelmente foi atingido nessa saraivada de balas.

A polícia ainda não sabe ao certo como Sarreshteh conseguiu a arma. Mas diz que o fato de ser um modelo fantasma lhe permitiu esquivar-se de uma verificação de antecedentes que teria revelado um histórico criminal importante. O tiroteio mal chegou a ser noticiado em todo o país, mas mobilizou fortemente as autoridades de San Diego.

"Como pôde uma pessoa proibida de comprar uma arma de fogo legalmente ter acesso a uma calibre 9 e atirar em cinco pessoas na rua?", questionou a vereadora Marni von Wilpert, autora de uma lei que proíbe o uso de armamento sem número de série.

Líderes comunitários em alguns bairros violentos vêm soando o alarme há dois anos, com mais adolescentes procurando esses modelos caseiros para sua proteção ou para exibir que são fortes.

"As pessoas não estão mais comprando armas legítimas", diz Antoine Towers, que trabalha em um programa antiviolência em Oakland. "Quase todos os jovens hoje usam uma fantasma."

No início do ano passado, Bryan Muehlberger, de Los Angeles, quis comprovar como é fácil um menor de idade comprar um kit online para fabricar uma arma de fogo. Ele encomendou o kit usando o nome de sua filha adolescente, Gracie, ticando as caixinhas indicando que ela era uma compradora legal.

A empresa, que ele não quer identificar porque ela está de posse de informações pessoais sobre sua família, processou o pedido sem se dar ao trabalho de verificar se Gracie tinha mais de 21 anos, como requer a legislação estadual. "Recebi um pacote pelo correio endereçado a Gracie Muehlberger", diz, fazendo uma pausa para se acalmar. "Fiquei estarrecido."

Gracie Muehlberger está morta. Foi abatida por uma arma fantasma quando tinha 15 anos, ao lado de Dominic Blackwell, de 14, no ataque ao colégio Saugus.

Tradução de Clara Allain

Erramos: o texto foi alterado

A palavra "​build", em inglês, foi incorretamente traduzida como "vender". No contexto da reportagem, ela significa "montar".

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.