Brasil se isolou do mundo depois de Lula, diz novo presidente de Cabo Verde

Para José Maria Neves, país tinha imagem forte com o petista, mas ficou tímido com Dilma e depois voltou-se para dentro

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

O novo presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, 61, afirma que o Brasil se afastou do cenário internacional na última década, desde o fim do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"O Brasil tem uma força extraordinária no mundo, exerce uma atração impressionante. Quando o presidente Lula esteve no poder, tinha uma perspectiva de promoção do Brasil no mundo", afirma Neves, em entrevista à Folha.

O presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, durante a campanha eleitoral em 2021 - Divulgação

Neves tomou posse nesta terça-feira (9) para um mandato de cinco anos à frente do arquipélago de língua portuguesa com 590 mil habitantes, localizado no oeste da África a pouco mais de três horas de voo de Fortaleza (CE). Antes, foi primeiro-ministro do país durante 15 anos,

Membro do PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde), de centro-esquerda, ele foi eleito em primeiro turno, derrotando o candidato governista, de centro-direita. O país é considerado um modelo de democracia na África, com partidos se revezando no poder frequentemente.

Neves conhece bem o Brasil. Nos anos 1980, formou-se em administração pela Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, e acompanhou de perto a fase final da ditadura militar.

Sobre o risco de um retrocesso democrático no Brasil, ele faz um alerta. "Nos últimos anos, ficou muito claro que mesmo nos países com instituições sólidas, como os EUA, a democracia pode regredir e pode haver avanços de movimentos populistas e antidemocráticos."

Como foi sua experiência no Brasil e como ela ajudou em sua carreira política? Vivi no Brasil entre 1982 e 1986. Fiz o curso de Administração Pública na Fundação Getulio Vargas, que tem um currículo vastíssimo, com interdisciplinaridade em termos de direito, ciências políticas, economia, finanças públicas etc. Quando cheguei, o Brasil estava em plena campanha para governadores. Eram as primeiras eleições de transição para a democracia, quando Franco Montoro, Leonel Brizola e Tancredo Neves foram eleitos. Também acompanhei a campanha das Diretas, depois a eleição e a morte de Tancredo. Vivi esse momento de explosão, em que foram criadas as condições para uma efetiva transição do regime militar para o democrático.

Há um temor no Brasil de que haja um recuo democrático, no contexto do atual governo, do presidente Jair Bolsonaro. O sr. vem acompanhando esse tema? Nos últimos anos, ficou muito claro que mesmo nos países com instituições sólidas, como os EUA, a democracia pode regredir e pode haver avanços de movimentos populistas e antidemocráticos. O importante, do meu ponto de vista, é continuarmos a investir no reforço das instituições. Se continuarmos investindo numa imprensa livre e numa Justiça independente, resistiremos, e o campo democrático continuará a encontrar antídotos para esses grupos mais extremistas, populistas e demagógicos.

O que o sr. espera da relação com o presidente Bolsonaro, já que o sr. é de esquerda e ele, de direita? As relações são entre Estados. Vamos trabalhar independentemente dos governos que estejam no Brasil ou em Cabo Verde, que são sempre conjunturais, para o reforço das relações de amizade e cooperação.

O Brasil tem uma força extraordinária no mundo, exerce uma atração impressionante. Quando o presidente Lula esteve no poder, tinha uma perspectiva de promoção do Brasil no mundo. O Brasil tinha uma imagem muito forte. Conseguiu chegar a liderar a OMC [Organização Mundial do Comércio], a FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura], e o presidente [Lula] foi convidado para a cúpula da União Africana. Depois esteve aqui em Cabo Verde para uma cúpula com os 15 Estados da Cedeao [Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental]. Havia influência do Brasil em vários palcos do mundo.

O sr. acha que o Brasil se afastou da África? Não só da África, do mundo. O Brasil isolou-se um pouco após a saída do Lula. Mesmo a [ex-presidente] Dilma [Rousseff] tinha uma política muito tímida. Houve uma forte modernização com [o ex-presidente] Fernando Henrique [Cardoso], que realizou efetivamente a transição e "civilizou" o governo do Brasil. Ele tinha uma perspectiva modernizadora e transformadora muito forte, deu uma dimensão internacional ao Brasil com seu prestígio de intelectual, de um governante visionário e moderno.

Depois veio Lula, numa outra perspectiva, mas com uma grande sensibilidade com relação às relações internacionais. E depois houve alguma timidez no governo Dilma e mais tarde um recuo, o Brasil voltou-se muito mais para dentro.

Lula está liderando as pesquisas para a eleição do ano que vem. O sr. torce pela volta dele? Não, eu não torço por nenhum candidato em especial. Vou trabalhar com o presidente que ganhar, para reforçar as relações.

Cabo Verde está a pouco mais de três horas de voo do Brasil. No entanto, as relações bilaterais ainda parecem aquém do potencial. Como intensificá-las? Falamos português. Temos uma identidade muito forte com o Nordeste brasileiro. Se você chegar à ilha de Santiago [uma das que compõem o país] e não tomar cuidado, pode pensar que está no Nordeste do Brasil.

Cabo Verde pode servir como plataforma, como porta de entrada do Brasil na África, na indústria, no turismo, na educação superior, na ciência e inovação. Há escolas brasileiras que podem instalar-se em Cabo Verde e de lá podem trazer estudantes de toda a África.

O novo presidente de Cabo Verde, José Maria Neves, durante cerimônia de formatura na FGV, nos anos 80 - Divulgação

A economia de Cabo Verde caiu 15% em 2020 por causa da pandemia. Como reverter esse quadro? Estamos a trabalhar para que até o final do ano tenhamos a população imunizada. Já temos mais de 80% com a primeira vacina, e perto de 50% com as duas doses. Queremos a retomada do turismo, que é o motor do crescimento do país. Não será fácil, mas a economia já cresceu 6,2% no último trimestre.

Cabo Verde é considerado um modelo de democracia na África. Recentemente vimos o ressurgimento de golpes e guerras no continente, em países como Guiné, Mali, Sudão e Etiópia. Como vê esses retrocessos? Sou otimista, mesmo com esses casos. O da Etiópia é muito grave, é uma grande potência da África, sede da União Africana e da Comissão Econômica da ONU para o continente. A África deve trabalhar de uma forma mais coesa para fazer face a essas situações e sobretudo criar mecanismos de prevenção de gestão de conflitos. Ainda há muitas debilidades, mas temos de trabalhar para que a própria África encontre soluções.

Como o sr. vê as discussões na COP26, e qual a ameaça existencial que o aquecimento global representa para um arquipélago como Cabo Verde? Temos secas severas desde o "achamento" das nossas ilhas, em 1460 [pelos portugueses]. O nome de Cabo Verde é um equívoco, não somos nem cabo nem verde. Tivemos fomes, mortandade, e por isso Cabo Verde tem uma grande diáspora. Nos últimos anos temos tido mais secas, aumento da temperatura, e claro que estamos sujeitos ao aumento do nível das águas do mar. A questão climática para nós é muito cara.

Temos trabalhado arduamente de modo a cumprirmos as decisões no sentido de não ultrapassarmos 1,5°C de aquecimento global. Os pequenos Estados insulares estão muito preocupados, sobretudo os do [oceano] Pacífico, que poderão ter consequências imediatas muito mais graves do que os do Atlântico. Mas todos os arquipélagos correrão sérios riscos se não forem tomadas medidas imediatas

Outro tema importante da região oeste da África é a pirataria. O Brasil tem um acordo de apoio à Marinha de Cabo Verde. O sr. defende que essa cooperação seja intensificada? Para mim é fundamental. Devemos trabalhar para reforçar esse acordo e ampliá-lo. Há enormes possibilidades de cooperação no domínio da segurança e da estabilidade. Para Cabo Verde é estratégico, e para o Brasil também, como um grande país do Atlântico sul.

Recentemente, Cabo Verde extraditou o empresário Alex Saab, ligado ao regime venezuelano, para os EUA, provocando críticas do governo Nicolás Maduro. O sr. avalia que esse processo foi bem conduzido? Não tenho todos os dados dessa questão. Mas esse caso passou por todas as instâncias judiciais.

A Venezuela fez críticas muito fortes a Cabo Verde. O sr. pretende procurar Maduro, que também é um homem de esquerda, como o sr.? Sou de esquerda, mas de uma esquerda democrática. As relações não foram interrompidas, e espero que não sejam por causa dessa matéria. Havendo espaço para alguma intervenção, fá-lo-ei, de acordo com os dados que eu tiver.


Raio-x

José Maria Neves, 61
Nascido em Santa Catarina, em Cabo Verde, graduou-se em administração pública pela Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Foi primeiro-ministro de Cabo Verde de 2001 a 2016, presidente do Concelho (equivalente a prefeito) de Santa Catarina, em 2000, e presidente do PAICV (Partido Africano para a Independência de Cabo Verde), sigla pelo qual foi eleito em primeiro turno para a Presidência do país.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.