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Cubanos se preparam para novo dia de protestos sob repressão e ameaças do regime

Um dia antes, organizador dos atos caminhará sozinho com flores brancas por Havana para incentivar participação

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Buenos Aires

O dramaturgo Yunior García, 39, tomou uma decisão surpreendente. Líder do movimento Archipiélago, que organiza a convocação para a marcha pacífica contra o regime cubano marcada para esta segunda (15), ele caminhará sozinho pelas ruas de Havana carregando flores brancas um dia antes dos atos.

Uma vez que a repressão tomou formas mais agressivas nos últimos dias, com prisões e atos de intimidação —grupos gritaram insultos contra García durante a noite e atiraram aves mortas nas paredes de sua casa—, o artista quer fazer algo que encoraje a população a participar das manifestações.

Rua no centro de Havana, em Cuba
Rua no centro de Havana, em Cuba - Alexandre Meneghini - 8.out.21/Reuters

A ideia, explica o dramaturgo, é "representar os que não poderão sair porque estão presos ou mortos" e mostrar à ditadura que a população não tem medo e marchará no dia seguinte. A estratégia busca, também, avaliar quanta brutalidade o líder do país, Miguel Díaz-Canel, estaria reservando aos dissidentes.

O trajeto de García começará às 15h (17h no Brasil) e vai do bairro de Vedado até o Malecón. "Não será um ato de heroísmo, mas de responsabilidade", afirmou ele, que pediu aos manifestantes para que, no dia seguinte, inspirem-se na ideia de caminhar pacificamente, deixando claro que se trata de se "expressar livremente, de modo criativo, sem dar espaço para que desatem a violência sobre nós".

Os atos marcados para esta segunda-feira buscam dar continuidade às manifestações espontâneas e inéditas que ocorreram em 11 de julho e levaram milhares de pessoas às ruas para protestar contra os cortes de luz, a perseguição a dissidentes do regime e a falta de alimentos e remédios. A escassez desses produtos se agravou com a pandemia de coronavírus, que interrompeu a entrada de turistas —o turismo é a principal indústria do país— e das remessas de dinheiro que chegam de cubanos no exterior.

Até aqui, a repressão ao movimento já levou à prisão 1.175 pessoas, de acordo com a associação Cubalex, que monitora temas relacionados a detenções políticas na ilha. Mais da metade deles continua atrás das grades e apenas cerca de 60 julgamentos foram realizados.

Segundo a ONG Human Rights Watch, em relatório realizado por meio de entrevistas com vítimas e familiares, as prisões são locais para tortura psicológica, como privação de sono e humilhações —dissidentes foram, por exemplo, obrigados a tirar a roupa e caminhar por horas gritando "Viva, Fidel".

Ainda que tenha admitido que "situações complexas podem levar a alguns excessos", Díaz-Canel negou os relatos de tortura e afirmou que ninguém está desaparecido. "Nossa prioridade, nesses casos, é logo informar a família onde a pessoa presa está e como ela está."

Enquanto alguns dos detidos foram liberados depois de semanas ou meses, outros receberam penas duras. Roberto Perez Fonseca, 38, acusado de desordem pública e de instigar crimes, foi condenado a dez anos de prisão. A polícia afirmou que ele atirou, com ímpeto de destruir, pedras contra um carro da polícia.

Os protestos de julho terminaram também com um morto, o cantor Diubis Laurencio Tejeda, 36.

A campanha para desmobilizar os atos também contou com outras estratégias: demissões de participantes do protesto de julho, ou de seus familiares, "escraches" na porta da casa dos rebeldes e ameaças de imputar novos crimes aos que saíram recentemente da cadeia.

Enquanto os atos de julho tiveram início de modo súbito, desta vez os manifestantes buscaram apoio internacional ao pedir permissão ao regime para o protesto desta segunda. Trata-se, afinal, de um direito garantido na Constituição, e se o governo não permitisse daria sinais de que a lei é letra morta.

Foi o que ocorreu. A ditadura recusou a permissão, sob a justificativa de que, durante o período, haverá exercícios militares visando a promoção da reabertura da ilha e da chegada de turistas. A entrada de estrangeiros será permitida pela primeira vez desde a pandemia justamente a partir desta segunda.

O regime tenta tirar a legitimidade do movimento, afirmando que se trata de uma marcha "subversiva e financiada pelos EUA" e que Cuba "tem o direito de se proteger de agressão estrangeira". Para tal, Díaz-Canel tem convocado defensores do governo a sair às ruas para colocar freio nos protestos.

À União Europeia, que afirmou observar o movimento por meio de seus representantes na ilha, o chanceler cubano, Bruno Rodríguez, disse "haver pressão sobre os diplomatas estrangeiros para tomar partido e participar dos atos de desestabilização". "Peço que respeitem a Convenção de Viena."

Os protestos de julho foram os mais intensos desde 1994, quando o país passava pelo Período Especial e a economia colapsou após o fim do apoio financeiro vindo da antiga União Soviética. Na ocasião, Fidel Castro fez um discurso nas ruas de Havana para acalmar a população.

Cuba passa por dificuldades depois de o PIB da ilha encolher 11% em 2020, principalmente devido às restrições impostas pela pandemia. Os problemas acarretados pelo embargo americano, que está por trás de boa parte do desabastecimento, também se agravaram durante o período. Há relatos de que em grande parte da ilha há apagões de eletricidade que chegam a durar até seis horas.

Nesta segunda, haverá manifestações também em Miami, de cubanos radicados nos EUA. Embora o presidente Joe Biden tenha anunciado novas sanções a funcionários cubanos depois dos protestos de julho, o líder americano não emitiu novas declarações de apoio à nova marcha.

Os interesses dos EUA estão, em grande parte, relacionados ao processo eleitoral, já que 1,5 milhão de cubano-americanos votaram em Donald Trump e apoiaram o recuo na aproximação iniciada na gestão de Barack Obama. Desde que tomou posse, Biden não realizou grandes mudanças na política para a ilha. O fim do embargo é um tema travado no Congresso, e, sem o apoio dos republicanos, não se concretizará.

Para o analista político e diretor do projeto de documentação de Cuba no Arquivo de Segurança Nacional dos EUA, Peter Kornbluh, a estratégia em relação a Cuba sempre foi a de "exploração, intervenção e negligência". "O que ocorre agora é produto de anos de políticas abusivas, agravadas pela pandemia. Biden vem dizendo que está com o povo cubano, mas no fundo ele vem mantendo as sanções políticas da época de Trump sem introduzir nenhum elemento novo", afirma ele. "Biden deveria insistir em autorizar a entrada de ajuda humanitária e acabar com as restrições a viagens de americanos à ilha."

Por outro lado, o analista afirma que a acusação do regime cubano de que os EUA estão por trás dos protestos "paralisa Biden, porque o que ele fizer será visto como parte de uma conspiração".

"A direita em Washington retratará qualquer retorno à normalidade na relação com Cuba como um presente à ditadura, mais do que um apoio ao povo cubano, que é quem precisa e se beneficiaria disso."

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