Projéteis de artilharia disparados por separatistas apoiados pela Rússia caíram em uma pequena cidade nas planícies do leste da Ucrânia, arrancando galhos de árvores, abrindo crateras, explodindo seis casas e matando um soldado ucraniano.
Foi uma resposta lamentavelmente usual a uma provocação muito pequena: uma disputa sobre compra de mantimentos para cerca de cem pessoas que vivem na zona neutra entre os separatistas e as forças governamentais da Ucrânia. Mas, no estado de tensão elevada da guerra ucraniana, episódios de pequena monta podem ganhar contornos de batalhas grandes.
Protegido em um bunker, o comandante ucraniano major Oleksandr Sak pediu um contra-ataque com uma arma sofisticada e nova do arsenal ucraniano: um drone armado Bayraktar TB2, de fabricação turca.
Usado em combate pela primeira vez pela Ucrânia e fornecido por um país que é membro da Otan (aliança militar ocidental), o drone atingiu um morteiro operado pelos separatistas. A partir desse ponto a situação se agravou rapidamente. A Rússia mobilizou jatos e, no dia seguinte, tanques foram enviados para a fronteira. Esforços diplomáticos entraram em ritmo acelerado em Berlim, Moscou e Washington.
O aumento súbito das hostilidades no mês passado evidencia a natureza tênue do cessar-fogo vigente no front de 450 km de extensão da guerra da Ucrânia. E desencadeou uma nova onda de avisos funestos lançados por Moscou, destacando a disposição do presidente russo, Vladimir Putin, de escalar o chamado conflito híbrido, que usa meios militares e outros —incluindo a exploração de crises humanitárias como a que se desenrola no momento na fronteira entre Polônia e Belarus— para promover turbulência.
O ataque em Hranitne também gerou receios de que a Rússia aproveite os combates como pretexto para uma nova intervenção na Ucrânia, potencialmente atraindo EUA e Europa a uma nova fase do conflito. "Tememos que a Rússia cometa o erro grave de tentar reviver o que fez em 2014, quando acumulou forças ao longo da fronteira, adentrou território soberano da Ucrânia e o fez alegando falsamente ter sido provocada", disse o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, na semana passada.
O conflito vive um momento cada vez mais volátil. Fotos e vídeos de satélites comerciais mostraram uma aglomeração de veículos blindados russos perto da fronteira. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, estima que haja 100 mil soldados reunidos na área. E a Rússia endureceu seu discurso.
Em meio à tensão elevada, o ataque de drone virou um momento decisivo para o Kremlin. Alarmada com o fato de a Ucrânia possuir essa capacidade militar nova e altamente eficaz, a Rússia descreveu o ataque como um ato desestabilizador que violou o cessar-fogo firmado em 2015.
Não é de hoje que Putin deixa claro que enxerga a vizinha como inseparável. Em julho, ele publicou um artigo apresentando essa doutrina, descrevendo Rússia e Ucrânia como "essencialmente" um só país dividido pela interferência ocidental no período pós-soviético. Parece ter sido uma tentativa de justificar uma unificação —a Rússia já anexou a península da Crimeia. "Jamais deixaremos que nossos territórios históricos e os povos próximos de nós que vivem neles sejam utilizados contra a Rússia", escreveu.
Operações de hackers, interferência eleitoral, política energética e a crise recente na Belarus —todos esses fatores vêm esquentando as relações entre Ocidente e Rússia. Mas em nenhum lugar as tensões estão mais evidentes do que nessa zona de conflito que passa por vilarejos e campos, com um lado apoiado por Washington e outro por Moscou.
A Rússia interveio militarmente na Ucrânia em 2014, quando protestos de rua levaram à deposição de um presidente ucraniano pró-russo. Moscou despachou para a Crimeia soldados com máscaras de esqui e uniformes sem identificação, intensificando a rebelião em dois enclaves separatistas no leste do país, as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk.
A linha de frente da guerra às vezes é descrita como um novo Muro de Berlim —uma linha divisória na geopolítica. É uma região estranha feita de cidades, campos e florestas semiabandonados.
Também é uma caixa de pólvora que só requer uma faísca para atear novas hostilidades. No fim de outubro, esse papel coube à zona neutra nos arredores de Hranitne.
Na maioria dos lugares ao longo do front, só algumas centenas de metros separam duas linhas de trincheiras. Mas em algumas áreas a zona se alarga. Nesses pontos, pessoas vivem entre os dois exércitos, habitando uma terra de ninguém conhecida na Ucrânia como "zona cinza". Os moradores são obrigados a atravessar trincheiras para fazer compras e levar filhos à escola, sendo protegidos por uma trégua intranquila. "É assustador", comentou o aposentado Oleksandr Petukhov, carregando uma sacola de queijo e ovos ao passar por um ponto de controle. "É uma situação absurda."
Os moradores de Hranitne que fazem compras do lado ucraniano precisam atravessar uma ponte sobre o rio Kalmius, um riacho de água verde-escura. Soldados espiam sobre parapeitos de sacos de areia.
Os problemas começaram há um mês, quando separatistas fecharam um posto de controle. As razões não estão claras, e é possível que tenha sido uma medida de precaução contra o coronavírus.
Em resposta, em 25 de outubro Volodimir Vesiolkin, administrador de Hranitne, liderou um contingente de uma dúzia de soldados que atravessou a ponte. No mesmo dia, soldados deitaram blocos de concreto para a construção de uma nova ponte, a 700 metros de distância, que permitiria a passagem de veículos.
Vesiolkin diz que sua motivação foi humanitária: garantir aos moradores o acesso a compras de víveres e carvão, para aquecer suas casas no inverno. "Como é possível que isso viole qualquer coisa?", questionou. "Essa é nossa vila. É nossa gente."
Os separatistas interpretaram a iniciativa de outro modo, como tentativa de o lado oposto apropriar-se de terras. E logo depois dispararam 120 projéteis contra a ponte nova inacabada —mas todos erraram o alvo e atingiram casas próximas. Uma delas acabou se tornando uma pilha de blocos de concreto.
Sak afirmou ter pedido o ataque de drone porque era a única arma capaz de atingir a artilharia inimiga e porque civis corriam perigo —apesar de nenhum ter sido atingido. "Só armas modernas nos permitem sustar a agressão da Rússia."
A maioria dos analistas diz que os incidentes explosivos são mais um pretexto do que uma causa de gestos estratégicos ameaçadores. Mas constituem faíscas em um mundo já perigoso, com o Ocidente em estado de alerta máximo, e a Rússia assumindo posição cada vez mais belicosa em relação à Ucrânia.
Quando os combates em Hranitne se acalmaram, os moradores emergiram com ao menos uma pequena vitória: conseguiram seus mantimentos. Dois dias após o ataque de drone, os separatistas abriram seu posto de controle, deixando a Cruz Vermelha entregar cestas de 25 kg de alimentos em cada casa da vila.
Elas continham arroz, açúcar, óleo de girassol, macarrão, farinha de trigo e latas de carne e peixe.
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