Disputa por mantimentos leva a ataque de drone e evidencia cessar-fogo tênue na Ucrânia

Conflito com separatistas próximo a fronteira com a Rússia volta a registrar tensão

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Andrew E. Kramer
Hranitne (Ucrânia) | The New York Times

Projéteis de artilharia disparados por separatistas apoiados pela Rússia caíram em uma pequena cidade nas planícies do leste da Ucrânia, arrancando galhos de árvores, abrindo crateras, explodindo seis casas e matando um soldado ucraniano.

Foi uma resposta lamentavelmente usual a uma provocação muito pequena: uma disputa sobre compra de mantimentos para cerca de cem pessoas que vivem na zona neutra entre os separatistas e as forças governamentais da Ucrânia. Mas, no estado de tensão elevada da guerra ucraniana, episódios de pequena monta podem ganhar contornos de batalhas grandes.

Ponte de madeira sobre o rio Kalmius, um dos motivos que desencadeou ponto de tensão entre separatistas e ucranianos em Hranitne
Ponte de madeira sobre o rio Kalmius, um dos motivos que desencadeou ponto de tensão entre separatistas e ucranianos em Hranitne - Brendan Hoffman - 5.nov.21/The New York Times

Protegido em um bunker, o comandante ucraniano major Oleksandr Sak pediu um contra-ataque com uma arma sofisticada e nova do arsenal ucraniano: um drone armado Bayraktar TB2, de fabricação turca.

Usado em combate pela primeira vez pela Ucrânia e fornecido por um país que é membro da Otan (aliança militar ocidental), o drone atingiu um morteiro operado pelos separatistas. A partir desse ponto a situação se agravou rapidamente. A Rússia mobilizou jatos e, no dia seguinte, tanques foram enviados para a fronteira. Esforços diplomáticos entraram em ritmo acelerado em Berlim, Moscou e Washington.

O aumento súbito das hostilidades no mês passado evidencia a natureza tênue do cessar-fogo vigente no front de 450 km de extensão da guerra da Ucrânia. E desencadeou uma nova onda de avisos funestos lançados por Moscou, destacando a disposição do presidente russo, Vladimir Putin, de escalar o chamado conflito híbrido, que usa meios militares e outros —incluindo a exploração de crises humanitárias como a que se desenrola no momento na fronteira entre Polônia e Belarus— para promover turbulência.

O ataque em Hranitne também gerou receios de que a Rússia aproveite os combates como pretexto para uma nova intervenção na Ucrânia, potencialmente atraindo EUA e Europa a uma nova fase do conflito. "Tememos que a Rússia cometa o erro grave de tentar reviver o que fez em 2014, quando acumulou forças ao longo da fronteira, adentrou território soberano da Ucrânia e o fez alegando falsamente ter sido provocada", disse o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, na semana passada.

O conflito vive um momento cada vez mais volátil. Fotos e vídeos de satélites comerciais mostraram uma aglomeração de veículos blindados russos perto da fronteira. O presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, estima que haja 100 mil soldados reunidos na área. E a Rússia endureceu seu discurso.

Em meio à tensão elevada, o ataque de drone virou um momento decisivo para o Kremlin. Alarmada com o fato de a Ucrânia possuir essa capacidade militar nova e altamente eficaz, a Rússia descreveu o ataque como um ato desestabilizador que violou o cessar-fogo firmado em 2015.

Não é de hoje que Putin deixa claro que enxerga a vizinha como inseparável. Em julho, ele publicou um artigo apresentando essa doutrina, descrevendo Rússia e Ucrânia como "essencialmente" um só país dividido pela interferência ocidental no período pós-soviético. Parece ter sido uma tentativa de justificar uma unificação —a Rússia já anexou a península da Crimeia. "Jamais deixaremos que nossos territórios históricos e os povos próximos de nós que vivem neles sejam utilizados contra a Rússia", escreveu.

Operações de hackers, interferência eleitoral, política energética e a crise recente na Belarus —todos esses fatores vêm esquentando as relações entre Ocidente e Rússia. Mas em nenhum lugar as tensões estão mais evidentes do que nessa zona de conflito que passa por vilarejos e campos, com um lado apoiado por Washington e outro por Moscou.

A Rússia interveio militarmente na Ucrânia em 2014, quando protestos de rua levaram à deposição de um presidente ucraniano pró-russo. Moscou despachou para a Crimeia soldados com máscaras de esqui e uniformes sem identificação, intensificando a rebelião em dois enclaves separatistas no leste do país, as repúblicas populares de Donetsk e Luhansk.

A linha de frente da guerra às vezes é descrita como um novo Muro de Berlim —uma linha divisória na geopolítica. É uma região estranha feita de cidades, campos e florestas semiabandonados.

Também é uma caixa de pólvora que só requer uma faísca para atear novas hostilidades. No fim de outubro, esse papel coube à zona neutra nos arredores de Hranitne.

Na maioria dos lugares ao longo do front, só algumas centenas de metros separam duas linhas de trincheiras. Mas em algumas áreas a zona se alarga. Nesses pontos, pessoas vivem entre os dois exércitos, habitando uma terra de ninguém conhecida na Ucrânia como "zona cinza". Os moradores são obrigados a atravessar trincheiras para fazer compras e levar filhos à escola, sendo protegidos por uma trégua intranquila. "É assustador", comentou o aposentado Oleksandr Petukhov, carregando uma sacola de queijo e ovos ao passar por um ponto de controle. "É uma situação absurda."

Os moradores de Hranitne que fazem compras do lado ucraniano precisam atravessar uma ponte sobre o rio Kalmius, um riacho de água verde-escura. Soldados espiam sobre parapeitos de sacos de areia.

Os problemas começaram há um mês, quando separatistas fecharam um posto de controle. As razões não estão claras, e é possível que tenha sido uma medida de precaução contra o coronavírus.

Em resposta, em 25 de outubro Volodimir Vesiolkin, administrador de Hranitne, liderou um contingente de uma dúzia de soldados que atravessou a ponte. No mesmo dia, soldados deitaram blocos de concreto para a construção de uma nova ponte, a 700 metros de distância, que permitiria a passagem de veículos.

Vesiolkin diz que sua motivação foi humanitária: garantir aos moradores o acesso a compras de víveres e carvão, para aquecer suas casas no inverno. "Como é possível que isso viole qualquer coisa?", questionou. "Essa é nossa vila. É nossa gente."

Os separatistas interpretaram a iniciativa de outro modo, como tentativa de o lado oposto apropriar-se de terras. E logo depois dispararam 120 projéteis contra a ponte nova inacabada —mas todos erraram o alvo e atingiram casas próximas. Uma delas acabou se tornando uma pilha de blocos de concreto.

Sak afirmou ter pedido o ataque de drone porque era a única arma capaz de atingir a artilharia inimiga e porque civis corriam perigo —apesar de nenhum ter sido atingido. "Só armas modernas nos permitem sustar a agressão da Rússia."

A maioria dos analistas diz que os incidentes explosivos são mais um pretexto do que uma causa de gestos estratégicos ameaçadores. Mas constituem faíscas em um mundo já perigoso, com o Ocidente em estado de alerta máximo, e a Rússia assumindo posição cada vez mais belicosa em relação à Ucrânia.

Quando os combates em Hranitne se acalmaram, os moradores emergiram com ao menos uma pequena vitória: conseguiram seus mantimentos. Dois dias após o ataque de drone, os separatistas abriram seu posto de controle, deixando a Cruz Vermelha entregar cestas de 25 kg de alimentos em cada casa da vila.

Elas continham arroz, açúcar, óleo de girassol, macarrão, farinha de trigo e latas de carne e peixe.

Tradução de Clara Allain

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.