Descrição de chapéu The New York Times

Executivo da Nike revelou ter assassinado jovem negro, mas não contou a história toda

Larry Miller se abriu sobre o episódio em um livro de memórias sem citar nome da vítima; familiares pedem reparação

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Jeré Longman Kevin Draper
Filadélfia | The New York Times

Edward David White, 18, caminhava de volta para a casa onde vivia com sua família no bairro de West Philadelphia, tarde da noite de 30 de setembro de 1965, depois de terminar seu turno de trabalho num restaurante. Conhecido por seus familiares e amigos como David, tinha um filho de oito meses, e sua namorada estava grávida. Eles pretendiam se casar na primavera.

White não chegou em casa. Um rapaz de 16 anos, membro de uma gangue, bêbado com vinho barato e buscando vingança pela morte de um membro de seu grupo assassinado a punhaladas, atirou nele com uma arma de calibre 38, perfurando seu coração e seu pulmão direito. White estava desarmado e não tinha ficha policial. Foi abandonado para morrer na rua.

Retrato em preto e branco de Edward White em álbum
Foto de Edward David White em um álbum mantido por sua irmã Barbara Mack, na Filadélfia - Kriston Jae Bethel - 5.nov.21/The New York Times

Seu assassino acabaria tendo uma vida próspera como executivo esportivo e de marketing. Ele é Larry Miller, que hoje tem 72 anos, é ex-presidente da equipe de basquete profissional Portland Trail Blazers e diretor da marca Michael Jordan da Nike. Miller manteve segredo sobre seu passado assassino por mais de meio século, abrindo-se sobre o assunto numa entrevista recente na revista Sports Illustrated e em um livro a ser lançado em breve.

No livro, Miller se assombra por ter tido a sorte de deixar seu bairro antigo. Mas, num exemplar do livro ainda inédito ao qual o New York Times teve acesso, ele não cita o nome de sua vítima em nenhum momento e fala pouco sobre as implicações devastadoras para White, que nunca teve a oportunidade de segurar sua filha no colo, não pôde ver seu filho virar astro de basquete no colegial nem teve a chance de mimar seus netos.

Cinquenta e seis anos após a morte de White, seus familiares disseram que tiveram sua vida virada do avesso por Miller mais uma vez e voltaram a chorar a morte de White. Foram pegos de surpresa, sem ter conhecimento do artigo na revista nem saber que o livro seria publicado.

Um parente topou com o artigo da Sports Illustrated online, por acaso. O nome de White foi mencionado no artigo, e Miller disse que pretendia buscar contato com a família. Mas parentes de White disseram que ainda não foram procurados por Miller. Estão revoltados pelo fato de ele não ter mencionado no livro o nome de White nem qualquer detalhe sobre sua vida. White é retratado apenas superficialmente como uma vítima anônima, um desconhecido, "mais um rapaz negro".

Edward White foi escoteiro lobinho quando criança; ainda garoto, ganhava dinheiro ajudando pessoas a carregar suas compras do supermercado para casa. Ele também fazia travessuras ocasionais. De vez em quando dirigia o Chevy ano 1960 de sua irmã, apesar de ainda não ter carteira de motorista. Certa vez, depois de sair de carro e voltar apenas no dia seguinte, teve que explicar a seus pais como voltara com uma cesta de comida da casa de sua avó, em Maryland. White conseguiu seu emprego num restaurante por meio do programa Youth Corps de Filadélfia seis meses antes de ser morto, contaram seus pais na época, e sonhava em se tornar chef de cozinha.

A família gostaria no mínimo que o nome e a história de White sejam inseridos no livro de Miller antes de ser publicado. Escrito por Miller com sua filha mais velha, Laila Lacy, "Jump: My Secret Journey From the Streets to the Boardroom" está previsto para sair em janeiro pela William Morrow, um selo da editora HarperCollins.

"Você conhece o nome dele. Dê-lhe esse respeito pelo menos, especialmente porque você lhe tirou a vida", pediu Mariah Green, professora primária em Filadélfia e sobrinha-neta de Edward White.

Miller não respondeu a mensagens enviadas na quinta-feira (11) pedindo declarações. Contatada pelo telefone, sua assistente pediu a um repórter que lhe enviasse um email, que nem ela nem Miller responderam. Um representante da William Morrow tampouco respondeu a emails pedindo declarações.

Miller foi preso na noite do crime. Ele se confessou culpado de homicídio em segundo grau, foi colocado numa prisão para infratores jovens e foi solto após quatro anos e meio. Cumpriu mais cinco anos de prisão por uma série de assaltos à mão armada. Mas, com 30 e poucos anos, estabilizou sua vida, obteve diploma de bacharel, fez mestrado em administração de empresas e começou a galgar degraus no ambiente corporativo, confraternizando com atletas famosos como Michael Jordan e Derek Jeter e produzindo desfiles para a grife de moda praia Jantzen com modelos como a Miss Universo e Tyra Banks.

Miller se considera beneficiário de uma redenção que é possível quando as autoridades do sistema carcerário oferecem educação, reabilitação e esperança aos detentos, em lugar de apenas mantê-los encarcerados.

No livro, ele expressa remorso. Reconhece que o assassinato que cometeu foi sem provocação e sem sentido, que ele não conhecia a vítima e não sabia se ela fazia parte de uma gangue rival. Diz que seu arrependimento pelo assassinato "nunca vai diminuir, nem deveria", dizendo ainda: "Chorarei a morte dele para sempre".

Miller diz que começou a se libertar de pesadelos e enxaquecas quando escreveu o livro. Ele espera que o livro ajude jovens a entender que uma encruzilhada turbulenta na vida não precisa necessariamente significar um beco sem saída. Mas familiares de Edward White dizem que, enquanto Miller pôde avançar na vida, eles próprios se viram algemados ao passado.

Josaphine Hobbs, 75, a mãe dos filhos de White, contou que ficou tão atordoada e desesperada quando White morreu que tentou se jogar dentro do túmulo dele no funeral. Ela abandonou um curso de enfermagem para criar seus filhos pequenos como mãe solo e não conseguiu receber auxílio da previdência social para seus filhos. E, pelo fato de não ter concluído o ensino secundário, perdeu seu emprego de escritório numa seguradora.

Ela reprimiu tantas memórias do assassinato que não se lembra de nada sobre o homem que foi acusado e sentenciado. "Acho que minha mãe nunca superou aquele trauma", disse Aziah Arline, 55, filha de Hobbs e White, que é dona de uma creche e vive em Pennsauken, em Nova Jersey. "O que aconteceu mudou todo o rumo da vida dela."

Larry com tênis Nike
Larry Miller, ex-presidente da equipe de basquete profissional Portland Trail Blazers e assassino de Edward David White - Getty Images

A irmã mais velha de White é Barbara Mack, que hoje tem 84 anos. Ecoando outros membros da família, comenta que não entende como Miller pôde ser solto depois de cumprir apenas 4 anos e meio de prisão, apesar de ser menor de idade quando cometeu o crime. "Isso mostra que ninguém dava muita importância a crimes de negros contra negros."

Mack contou que durante anos evitou passar pelo cruzamento das ruas 53 e Locust, em West Philadelphia, onde seu irmão foi morto. O assunto era tão doloroso que a família nem sequer falava disso.

Hasan Adams, 56, o filho de White, homenageou seu pai dando a seu próprio filho mais velho o nome de Hasan David. Até ler o artigo na Sports Illustrated na semana passada, só sabia que seu pai tinha sido baleado quando voltava do trabalho.

"É inacreditável", comentou Adams, funcionário dos correios na Filadélfia. "A última coisa que eu poderia imaginar era que o assassino de meu pai fosse um empresário rico e bem-sucedido e que está escrevendo um livro." Quando tentou contar à sua esposa, Adams ficou com a voz embargada e não conseguiu falar. "Deixei minha mulher assustada", comentou.

Barbara Mack, a irmã de White, escreveu à William Morrow dizendo que o fato de um ato cruel ser trazido à tona outra vez "reabriu uma ferida, o sofrimento, as lágrimas" do que aconteceu décadas atrás. Ela quer que a editora e Larry Miller saibam que seu irmão não foi apenas um desconhecido baleado sem razão, mas um jovem amado por seus pais e quatro irmãos.

A família de White diz que quer mais do que remorso de Miller. Quer algum tipo de expiação. Um pedido formal de desculpas. Uma carta. Um encontro com a família. Uma bolsa de estudos no nome de White. Talvez alguma reparação financeira para os filhos de White com os lucros do livro.

Miller merece elogios por ter reconstruído sua vida, opinou William Gray, 79, amigo de longa data da família White e ex-carcereiro do presídio Holmesburg, na Filadélfia. Mas, para ele, "se ele quisesse realmente se redimir, antes de escrever ele teria buscado entrar em contato com os membros remanescentes da família, transmitido a eles como lamenta o que fez e perguntado ‘será que vocês conseguiriam me perdoar?’".

Miller e White viviam a oito quadras de distância um do outro. Ambos eram de famílias grandes de classe média. O pai de Miller trabalhava numa fábrica de gesso laminado; sua mãe era dona de casa. O pai de White era pintor de paredes, sua mãe era enfermeira. Nenhum dos dois rapazes gostava da escola.

Miller se descreve como aluno que só tirava notas altas mas que se sentia mais parte de um grupo na gangue do que em sala de aula. Dois anos após o crime, foi escolhido para ser o orador da turma dos 157 detentos adolescentes que receberam seus diplomas do ensino secundário no instituto correcional.

White não chegou a se formar no ensino secundário, optando em vez disso por trabalhar. Era conhecido por sua elegância: um chapéu de feltro usado em ângulo irreverente, óculos de sol, calças com vinco bem passado, sapato social de um tipo conhecido localmente como "old man Comforts". Adams guarda em seu celular uma foto de seu pai estiloso.

Antes de sair para o trabalho em 30 de setembro de 1965, White passou numa loja e comprou dois suéteres. Quando voltava para casa naquela noite, topou com Miller e vários outros aliados da gangue Cedar Avenue. No início daquele mês, um integrante dessa gangue tinha sido morto a facadas por um membro da gangue rival das ruas 53 e Pine. Miller estava buscando vingança.

Miller escreve no livro que portava uma arma de calibre 38 que sua namorada lhe dera. Ele e três companheiros cercaram White na esquina das ruas 53 e Locust.

White disse que não fazia parte de uma gangue e ergueu as mãos. Miller atirou em seu peito e continuou a caminhar, pensando "esse é um a menos" e que estava à caça de outro membro da gangue rival. Apenas décadas mais tarde conseguiu reconhecer que matara "um garoto que era exatamente como eu".

White foi declarado morto num hospital que podia ser visto da casa de seus pais. Foi sepultado no Rolling Green Memorial Park, a 12 km de distância, em West Chester, Pensilvânia, perto de seus pais, George e Pearl White, e de seu irmão mais velho, George Jr.

Morreu antes de todos eles. Faria 75 anos no próximo 21 de novembro. "Nunca cheguei a conhecê-lo", disse sua filha, Arlene. "Não é justo."

Tradução de Clara Allain

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