Descrição de chapéu África

Ocidente pede cessar-fogo na Etiópia, mas premiê eleva tom contra rebeldes

Em meio a aumento de tensão, Nobel da Paz Abiy Ahmed tem postagem excluída por apologia da violência

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Adis Abeba | Reuters e AFP

Em meio a uma escalada de tensão evidenciada também na retórica beligerante do primeiro-ministro que já venceu um Nobel da Paz, a Etiópia viu crescerem os pedidos internacionais por um cessar-fogo. A volta do conflito entre o governo central e rebeldes da região do Tigré completa um ano neste mês.

Na quarta-feira (3), a ONU voltou a fazer alertas para violações de direitos humanos na guerra entre as forças do premiê Abiy Ahmed e a TPLF (Frente de Libertação do Povo do Tigré), partido que hoje controla essa região ao norte do país. Segundo relatório das Nações Unidas, o conflito é marcado por "brutalidade extrema" e todos os envolvidos podem ter cometido crimes contra a humanidade.

Agricultores locais caminham ao lado de um tanque danificado e abandonado ao longo da estrada em Dansa, a sudoeste de Mekele, na região de Tigré, na Etiópia
Agricultores locais caminham ao lado de um tanque danificado e abandonado ao longo da estrada em Dansa, a sudoeste de Mekele, na região de Tigré, na Etiópia - Yasuyoshi Chiba - 20.jun.21/AFP

O documento aponta que os dois lados cometeram atos de tortura, estupraram homens e mulheres e mataram civis, além de fazerem prisões étnicas. O Departamento de Estado dos EUA disse que vai "analisar cuidadosamente" o relatório.

O enviado americano para a região conhecida como Chifre da África, Jeffrey Feltman, foi deslocado nesta quinta (4) para Adis Abeba com a missão de pressionar as autoridades pelo fim das operações militares e pelo início das negociações de cessar-fogo. O secretário-geral da ONU, António Guterres, disse que conversou com Ahmed e se ofereceu para ajudar a criar as condições para um diálogo.

A posição também foi adotada pela União Europeia, pela Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (Igad) —bloco de oito nações da África Oriental que atua como mediador nos conflitos do Sudão do Sul— e pela alta comissária da ONU para os direitos humanos, Michelle Bachelet.

"Esta investigação é a oportunidade para que todas as partes reconheçam suas responsabilidades, comprometam-se a adotar medidas concretas em termos de responsabilidade e reparação às vítimas e encontrem uma solução sustentável para acabar com o sofrimento de milhões de pessoas", afirmou a ex-presidente chilena na apresentação do relatório das Nações Unidas, em Genebra.

O texto tem como base 269 entrevistas confidenciais e reuniões com autoridades locais e federais, representantes de ONGs, profissionais da área da saúde e sobreviventes de episódios de abusos —metade das mulheres ouvidas foi vítima de estupros coletivos.

As entidades ainda acusam o governo central de novamente bloquear ajuda humanitária —nenhum comboio humanitário entra no Tigré desde 18 de outubro, segundo a ONU. Em resposta, Abiy Ahmed disse que o relatório "demonstra claramente que as acusações de genocídio são falsas e não têm nenhuma base".

Em nota do governo, ele rechaçou as alegações de que suas ações resultaram na morte de civis por fome.

A retórica do premiê tem indicado tudo menos um recuo. Em post nas redes sociais nesta quinta, confirmada por autoridades à agência Associated Press, o governo voltou a atacar os rebeldes com discurso agressivo. "Como diz o ditado, ‘um rato que se afasta de sua toca está mais perto da morte’."

No fim de semana, o Facebook deletou uma postagem de Ahmed, considerada ofensiva, que pedia à população que "enterrasse" as forças do Tigré. "Estamos comprometidos a ajudar as pessoas a se manterem seguras e a prevenir agressões online e offline por meio de nossas plataformas", disse um porta-voz do Facebook à agência de notícias Reuters.

Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro rejeitou os pedidos de negociação e acusou as forças do Tigré de exagerarem seus ganhos territoriais. "Este país não cede à propaganda estrangeira, estamos travando uma guerra existencial", disse em comunicado do governo. Um porta-voz ainda acusou a mídia internacional de ser "excessivamente alarmista" e de "perpetuar a propaganda terrorista como verdade".

Dias antes, o premiê havia pedido para que cidadãos pegassem em armas para se defender dos rebeldes.

Na terça, Ahmed declarou estado de emergência por seis meses em toda a Etiópia, depois que a TPLF anunciou ter avançado sobre outras regiões do país e considerou marchar até Adis Abeba. Desde então, segundo a Reuters, a polícia prendeu dezenas de pessoas —que dão, segundo um porta-voz, apoio moral, financeiro e de propaganda aos insurgentes.

Um porta-voz dos rebeldes informou nesta quarta que suas tropas estavam na cidade de Kemise, na região de Amhara, a 325 km da capital, e haviam se juntado a combatentes de um grupo da etnia oromo, o Exército de Libertação Oromo. "Não temos a intenção de atirar em civis e não queremos derramamento de sangue. Se possível, gostaríamos que o processo fosse pacífico", disse.

Nesta sexta (5), outros sete grupos –cuja capacidade e tamanho são incertos– se juntaram aos rebeldes Oromo e do Tigré, formando uma aliança de nove forças contra o governo central. Intitulada de Frente Unida das Forças Federais e Confederadas Etíopes, a união conta com grupos das regiões de Gambela, Afar, Somali e Benishangul e das etnias Agaw, Qemant e Sidama.

"O próximo passo será nos organizarmos e desmontarmos totalmente o governo existente, seja pela força ou por negociação, e então inserir um governo de transição", disse Mahamud Ugas Muhumed, membro do grupo Somali.

Analistas, porém, dizem acreditar que uma possível tomada da capital só se daria após os rebeldes assumirem o controle da estrada que liga Adis Abeba ao Djibuti, evitando, assim, contra-ataques de possíveis aliados do governo central.

Nesse contexto, a comunidade internacional receia que a guerra se espalhe para além das fronteiras etíopes. A conselheira especial da ONU para a prevenção do genocídio, Alice Wairimu Nderitu, disse em um evento online nesta quinta que se isso acontecesse seria "algo completamente incontrolável".

A embaixada dos EUA na Etiópia autorizou a saída voluntária de alguns funcionários e familiares e, nesta sexta, o governo americano aconselhou todos os seus cidadãos que estiverem no país a deixarem o território o "mais breve possível".

O conflito atual começou em novembro de 2020, quando grupos leais à TPLF tomaram bases militares no Tigré. Em resposta, Ahmed, vencedor do Nobel da Paz em 2019, enviou tropas para a região.

O hoje grupo insurgente dominou a política nacional por quase três décadas, mas perdeu influência depois de o atual premiê assumir o cargo, em 2018, após anos de protestos contrários ao governo da época.

As relações com a frente do Tigré, por sua vez, azedaram depois que Ahmed foi acusado de centralizar o poder às custas das administrações regionais do país —acusação que o premiê nega.

No último ano, o conflito matou milhares de pessoas, forçou mais de 2 milhões a fugir de casa e deixou 400 mil etíopes em situação de fome no Tigré.

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