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Alta abstenção na eleição de Hong Kong é recado eloquente para a China

Com oposição destruída e liberdades cerceadas, moradores se recusam a participar de pleito legislativo

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São Paulo

Em uma eleição qualificada por opositores exilados como um processo seletivo de candidatos aprovados previamente, o silêncio do cidadão de Hong Kong foi de uma estridente eloquência. Resta saber como isso será ouvido em Pequim.

Fechadas as urnas, 30,2% dos 4,47 milhões de eleitores haviam comparecido para escolher o novo Conselho Legislativo do território. Nas cinco ocasiões anteriores, a marca mais baixa havia sido 43%, em 2000.

Policiais em frente a uma seção eleitoral na região de Tuen Mun, em Hong Kong
Policiais em frente a uma seção eleitoral na região de Tuen Mun, em Hong Kong - Daniel Suen/AFP

A eleição tinha sido marcada para setembro do ano passado e cancelada sob a justificativa da Covid-19. O fato de que, no meio do caminho, em março deste ano, a ditadura comunista implodiu o sistema eleitoral honconguês deixa claro que talvez os motivos sanitários tenham sido secundários.

Mas o modelo que emergiu dos escombros foi amplamente rejeitado pela população.

O Conselho era a trincheira em que a oposição e grupos pró-democracia mantinham viva a relativa autonomia de Hong Kong, segundo o trato feito entre China e Reino Unido quando os britânicos devolveram a antiga colônia, em 1997.

Não que houvesse uma democracia tão liberal quanto o capitalismo do território, usado como entreposto financeiro entre Pequim e o mundo sem queixas chinesas ou estrangeiras do lado econômico. Mas, comparado aos engessados ritos políticos continentais, Hong Kong era uma Londres.

O desinteresse do eleitor decorre de dois pontos. Primeiro, apenas "patriotas", aspas obrigatórias, podem agora concorrer no território. Desnecessário dizer o que isso significa. Segundo, o próprio Conselho foi desfigurado: antes eram eleitos diretamente 50% de 70 deputados; agora, são 22% de 90.

Com efeito, a fatia generosa dada à toda-poderosa Comissão Eleitoral de indicar 40 desses 90 nomes se refletiu no empenho desses 1.448 delegados chancelados por Pequim. O comparecimento entre eles, para selecionar entre 153 candidatos, foi de 98,5%.

Os 30 nomes restantes são escolhidos num complexo sistema de votação por categorias profissionais, uma herança britânica. Aqui, a abstenção seguiu o nível geral, com pontos fora da curva óbvios: a recém-criada guilda das empresas do continente registrou 99% de comparecimento.

A intervenção política foi um corolário lógico do enjaulamento dos instintos democráticos da antiga cidade-Estado, estimulado pelo trauma de 2019.

Naquele ano, os protestos pró-democracia, ou ainda em favor da consolidação real do modelo "um país, dois sistemas" para além da data-limite de 2047 acertada em tratado, saíram do controle.

Isso já havia acontecido antes, como em 2014, mas houve acomodação, inclusive por meio de um aumento de representatividade da oposição, expresso na mais recente eleição do Conselho, em 2016. Ali, barulhentos jovens ganharam lugar no sistema, mesmo que sem desafiá-lo de forma decisiva.

Nos seis meses finais de 2019, o que houve foi o caos. Ruas ocupadas, quebra-quebra, invasões de universidade. A poderosa elite local, pró-Pequim, viu a economia do território afundar. O governo local até recuou sobre o estopim das manifestações, uma lei que favorecia a extradição de honcongueses para o continente, mas foi inútil.

A gota d'água foram as eleições locais de novembro, vencidas de forma avassaladora por nomes pró-democracia, ainda que candidatos simpáticos à ditadura tivessem mantido cerca de 40% do eleitorado, evidenciando nuances desta narrativa.

Com o esfriamento geral das relações interpessoais que acompanhou o surgimento do Sars-CoV-2, a China aproveitou para botar em marcha o plano de destruir o acordo feito com britânicos em 1984. Resultado, uma nova Lei de Segurança Nacional implantada em julho de 2020 que subverteu qualquer ideia de autonomia restante.

A oposição renunciou às suas cadeiras remanescentes no Conselho, ativistas foram presos ou fugiram, há relatos de perseguição e a ameaça até a exilados. Jornalistas foram detidos, o diário libertário Apple Daily fechou.

Do ponto de vista chinês, isso foi necessário para manter o "business as usual" do território e, principalmente, para esmagar ideias separatistas por lá e em qualquer outra região etnicamente diversa: Hong Kong é uma área cantonesa, enquanto 90% dos chineses falam mandarim. Em resumo, desestimular muçulmanos uigures ou quaisquer outros grupos de buscar mais autonomia.

Os pró-democracia, com a explosão de 2019, também cometeram erros políticos. A associação aberta com o apoio americano, um instrumento da Guerra Fria 2.0 empreendida pelos EUA contra a ascensão chinesa, legitimou a acusação feita por Pequim de que havia conluio com forças externas.

E a adoção cada vez mais aberta de slogans independentistas ("Liberte Hong Kong - Revolução dos nossos tempos" era o principal) obviamente não seria aceita nem na mais liberal das democracias —a Europa está coalhada de exemplos disso.

Assim, o silêncio do eleitor honconguês talvez mostre a Pequim que a semente de rebeldia do território pode estar germinando após a subjugação.

Está no DNA de lá: durante os 156 anos de ocupação britânica, valorizar a identidade chinesa era a forma mais comum de ativismo, dado que, apesar da fama democrática, as estruturas coloniais eram isso: estruturas coloniais.

Se tal semente terá condições de brotar algo no solo calcinado pela necessidade geopolítica de Xi Jinping, ou se irá afetar a atitude do regime ante Hong Kong, é algo ainda a observar. Se isso parece algo remoto, basta lembrar o peso da China nos fóruns políticos e nas correntes de comércio mundiais, como no caso brasileiro.

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