Ativistas pró e contra o aborto reveem estratégias e acirram disputa nos EUA

Com Suprema Corte podendo revisar Roe vs. Wade, movimentos se mobilizam para encarar nova realidade política

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Lisa Lerer Jeremy Peters
Nova York | The New York Times

Diante da probabilidade de a Suprema Corte americana enfraquecer ou derrubar a decisão histórica do processo Roe vs. Wade, que legalizou o aborto, ativistas e os dois principais partidos políticos dos Estados Unidos se preparam para uma nova batalha em torno de uma das questões culturais que dividem o país há mais tempo.

São os Legislativos estaduais, não os juízes da Suprema Corte, que terão a maior parte do poder de decidir sobre o aborto e determinar a facilidade ou dificuldade de acesso ao procedimento. Muitos legisladores serão forçados a argumentar sobre os detalhes mais íntimos de ecografias transvaginais, da concepção e de quando exatamente a vida se inicia.

Questões mais novas, como disputas em torno de telemedicina e pílulas abortivas, podem ganhar nova relevância política na medida em que pacientes buscam maneiras de desviar-se das restrições, controlando seus próprios abortos.

Manifestantes em ato em frente à Suprema Corte dos EUA no dia 1º, durante discussão sobre direito ao aborto no estado do Mississippi - Chip Somodevilla - 1º.dez.21/Getty Images/AFP

Depois dos argumentos orais da Suprema Corte na última quarta-feira (1º) no caso do Mississippi, as duas partes parecem estar de acordo sobre uma coisa, pelo menos.

"Esse pode ser um ponto importante, um abalo sísmico na política do aborto", diz Marjorie Dannenfelser, presidente da organização Susan B. Anthony List, que apoia candidatos antiaborto e faz campanha contra políticos que defendem os direitos ao procedimento em eleições em todo o país.

A Suprema Corte deve anunciar uma decisão em junho ou julho próximos, meses antes das eleições parlamentares que determinarão quem controla o Congresso e definirão o futuro da agenda do presidente Joe Biden.

O resultado que os juízes assinalaram durante o interrogatório —a restrição das proteções constitucionais ao aborto determinadas pelo processo Roe vs. Wade ou mesmo o desmonte completo desse padrão—deve levar a um acerto de contas para os defensores dos direitos de aborto.

Os democratas receiam que dentro em breve possam enfrentar uma luta mais urgente travada em cada estado para preservar o máximo possível de proteções; assim, estão planejando novas campanhas para controlar os Legislativos estaduais. Muitos consideram que já estavam na defensiva, dada a maioria conservadora na Suprema Corte e a enxurrada de restrições que tem sido aprovada em alguns estados. Para alguns ativistas, reconquistar esses direitos provavelmente vai exigir décadas de campanha.

"Precisamos começar a ajudar as pessoas a entender o que será preciso para reconquistar esses direitos", afirma Destiny Lopez, copresidente da entidade pró-direito ao aborto All* Above All. "Temos outra luta prolongada pela frente. Se demorar mais 50 anos, valha-me Deus. Serão no mínimo outros 15 ou 20 anos."

Para os adversários da prática, uma vitória na Suprema Corte seria o coroamento de décadas de trabalho conduzido desde os estados até a Casa Branca para limitar os direitos ao aborto. Ativistas disseram que, embora ainda haverá muito por lutar —restringir o acesso online a medicamentos que induzem o aborto, financiar mais serviços para mulheres que enfrentam uma gravidez indesejada—, é possível que certo grau de comodismo tome conta do movimento, um espírito de "já ganhamos".

"Haverá aqueles que cantam vitória e vão embora", diz Tom McClusky, presidente da entidade March for Life Action, que faz lobby contra o aborto. "A maioria dos doadores quer financiar uma luta. Os doadores querem financiar guerreiros, não samaritanos."

Ativistas de ambos os lados dizem que visualizam lutas que assumirão aparência muito diferente, dependendo do estado.

Na Califórnia, em Nova York e outros de maioria democrata, os defensores do direito ao aborto devem fazer campanha para ampliar o acesso à prática, aproveitando novas tecnologias como a telessaúde, elevando a cobertura do procedimento pelos convênios médicos e criando recursos para cobrir os custos incorridos por mulheres que precisam viajar para outros estados para abortar.

Mas em lugares como o Alabama, a expectativa é que os conservadores lutem por novas leis e políticas que visam fechar quaisquer brechas que ainda possibilitariam o aborto. Ao mesmo tempo, devem aumentar o apoio a mulheres que enfrentam uma gravidez imprevista.

Mini Timmaraju, presidente da Naral Pro-Choice America, uma das mais conhecidas organizações que defendem o direito ao procedimento, afirma que seu grupo esperava persuadir o Partido Democrata a assumir postura mais agressiva, a começar por planos para intensificar a pressão sobre o Congresso e os candidatos para que apoiem um projeto de lei que visa consagrar os direitos ao aborto na legislação federal. A medida foi aprovada pela Câmara em setembro, mas, sob as regras legislativas em vigor, tem pouca chance de virar lei.

A organização também pretende usar a questão para fazer pressão nas eleições parlamentares nacionais, argumentando que é preciso uma maioria democrata maior no Congresso para proteger o acesso ao aborto e instaurar juízes que não sejam hostis a esse direito.

"Depois disso que vimos, é justificado recorrer a tudo: emendas constitucionais, iniciativas que vão a voto popular, ampliação da Suprema Corte", diz Timmaraju. "Agora precisamos recuar um passo e refletir sobre qual será a agenda de longo prazo."

Muitos ativistas querem investir mais no esforço para mudar a posição dos Legislativos estaduais, argumentando que deveriam trabalhar do mesmo modo que os conservadores sociais que estão do lado oposto na questão do aborto.

Esforços conservadores atingiram novo pico neste ano, quando 106 restrições ao aborto foram aprovadas em diversos estados —o maior número desde Roe vs. Wade, em 1973, segundo o Guttmacher Institute, entidade liberal que acompanha a evolução da legislação sobre saúde reprodutiva feminina.

"Já estamos vivendo num mundo pós-Roe", diz Lopez.

Se a Suprema Corte derrubar Roe, 26 estados certa ou provavelmente proibirão o aborto legal, segundo o Guttmacher, por meio de leis que foram aprovadas antes do caso e continuam viáveis. São as chamadas proibições engatilhadas, que entrarão em vigor automaticamente ou na sequência de ação estadual pronta se Roe deixar de se aplicar.

A previsão é que os estados de governo republicano vão analisar cuidadosamente como as mulheres poderão tentar contornar essas proibições. Alguns deles já o fizeram, criando um modelo a ser seguido por ativistas antiaborto.

No Texas, por exemplo, texto que entrou em vigor na quinta-feira proíbe médicos e outros provedores de medicamentos de enviar pílulas abortivas a mulheres pelo correio. O estado também prevê que um profissional médico precisa estar presente quando tais medicamentos são dados a pacientes. E 18 outros estados fazem o mesmo, inviabilizando a opção cada vez mais popular da telemedicina.

Enquanto isso, os defensores do direito ao aborto estão consolidando recursos, médicos e voluntários para ajudar pessoas a viajar a outros estados para fazer o procedimento. Estão sendo traçados mapas de "estados acolhedores", "intermediários" e "de risco".

De acordo com a Rede Nacional de Fundos para Abortos, esses grupos em todo o país —em sua maioria entidades sem fins lucrativos operadas por voluntários— desembolsaram US$ 9,4 milhões em 2020, sendo que em 2017 haviam gasto US$ 4 milhões.

O Texas, novamente, oferece uma prévia de como pode ser a paisagem.

Lei recentemente aprovada no estado proíbe o aborto após cerca de seis semanas de gravidez. Clínicas nos estados vizinhos vêm recebendo uma enxurrada de pacientes, os procedimentos ficaram mais caros e mulheres que não têm condições financeiras de viajar estão sendo obrigadas a continuar com a gravidez. O fluxo provocou um efeito dominó, reduzindo a disponibilidade de atendimentos e levando moradoras de estados vizinhos ao Texas a também viajar a outros estados para serem atendidas.

"Basicamente, quem mora no sul do país precisa ir ao Illinois, à Virgínia e ao Colorado [mais ao norte] para fazer um aborto", diz Amy Hagstrom Miller, presidente da Whole Woman’s Health, que opera clínicas de aborto no Texas e três outros estados.

Tradução de Clara Allain

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