Brasil tem vergonha das origens portuguesas, diz autor de livro sobre estranhamento entre países

Para Carlos Fino, visão negativa de Portugal alimenta lusofobia dos brasileiros, que negam heranças históricas

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Lisboa

Apesar do discurso diplomático de que Portugal e Brasil são países irmãos, unidos por profundos laços de amizade, existe um estranhamento entre as duas nações. Enquanto o Brasil tem vergonha de suas origens lusitanas, os portugueses menosprezam a antiga colônia.

Essas e outras considerações são feitas por Carlos Fino, 73, uma das figuras mais conhecidas do jornalismo português. Ele acaba de lançar "Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento" (Ed. Lisbon International Press) como resultado de sua tese de doutorado, defendida na Universidade do Minho.

Na obra, o autor argumenta que existe uma lusofobia no Brasil, alimentada por uma visão negativa de Portugal presente na imprensa, nos livros didáticos e até em produções culturais, como filmes e telenovelas.

Bonde típico de Lisboa passa em frente ao Consulado-Geral do Brasil na capital portuguesa - Líbia Florentino - 9.ago.21/Folhapress

"O Brasil tem vergonha da herança portuguesa", afirma o jornalista, para quem o preconceito com o passado lusitano é inconsciente e até rejeitado pela intelectualidade brasileira.

"Isso não existe em relação ao Portugal contemporâneo, que é muito procurado pelos brasileiros. Muitos gostam do país, os ricos brasileiros vão para Portugal comprar casa, mas isso não apaga o antilusitanismo, que está profundamente enraizado a ponto de ser inconsciente", avalia Fino.

Após uma longa carreira como correspondente internacional e de guerra pela RTP (emissora pública de Portugal), com temporadas em Moscou e Bruxelas, Fino mudou-se para o Brasil em 2004 para trabalhar como conselheiro de imprensa da embaixada portuguesa em Brasília. Ocupou o cargo até 2012.

O convite surgiu após o jornalista passar a ser reconhecido também no Brasil por causa de sua cobertura da invasão americana do Iraque em 2003. Ele foi o primeiro a noticiar, antes das grandes emissoras internacionais, o início do bombardeio em Bagdá. As imagens ganharam o mundo e também foram exibidas no Brasil em decorrência de um acordo entre a RTP e a TV Cultura.

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O novo livro, segundo o autor, é uma tentativa de contribuir para a superação do estranhamento entre os dois países. "É melhor aceitarmos a diferença para podermos superá-la", diz.

No livro, o senhor afirma que há um forte estranhamento entre Portugal e Brasil. Como começou a se dar conta disso? A minha missão na embaixada era projetar Portugal no Brasil, então eu estava particularmente antenado a esse tipo de coisa. Um episódio em um posto de gasolina, quando uma funcionária não sabia que em Portugal se falava português, foi um dos primeiros e mais marcantes, mas houve muitos outros.

Ou quando, por exemplo, em uma exposição sobre o Barroco brasileiro, em Brasília, não tinha uma referência a Portugal. Na exposição inteira, não havia a palavra "Portugal" e não havia a palavra "português". Isso começou-me a mostrar que o viés brasileiro é, digamos, diluir a memória portuguesa. Quando ela não pode ser apagada, ela é diluída. Em vez de português, diz-se ibérico. Ou em vez de ibérico, diz-se europeu.

As anedotas [piadas] que ainda persistem, pelas nossas costas ou na nossa frente. Não houve um português com quem eu tivesse falado para esta tese que não tenha contado que se sentiu constrangido ou humilhado de alguma forma com as anedotas. Essa persistência do português como sujo, como burro.

Como português, eu não poderia deixar também de reagir a isso. Eu acho que Portugal corre o risco de ver a sua memória histórica no Brasil apagada.

Na sua avaliação, por que há esse risco de apagamento? É claro que o Brasil tem diversas outras influências, desde as pré-históricas, passando pelos indígenas e depois pela presença negra vinda por meio da escravatura. Mais tarde, a partir do final do século 19, com espanhóis, italianos, japoneses, alemães, sírios, libaneses, eslavos e tantos outros. Claro que tudo isso tem que estar presente.

Agora, o que o que não pode ser apagado é que, apesar de todas essas diferenças, o que marca o Brasil é a herança portuguesa. Marca indelevelmente. A herança portuguesa não está presente, no meu entender, na consciência do brasileiro. Porque o Brasil, para se distinguir de Portugal, teve que acentuar as diferenças. E, portanto, acabou por apagar a importância da memória portuguesa.

Não é um estranhamento que vem do nada. Vem porque o Brasil tem vergonha da herança portuguesa.

Como opera essa vergonha do brasileiro em relação a Portugal? Essa vergonha não tem razão de ser, mesmo historicamente, porque o colonialismo português não foi nem pior nem melhor do que os outros colonialismos.

É negativo também para o Brasil. Por um lado, essa presença é indelével, está no sangue, está na língua e está na história, mas, por outro, ela é diminuída, desprezada, rejeitada.

O jornalista Carlos Fino, autor de 'Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento' - Reprodução/Carlos Fino no Facebook

Há vergonha da herança portuguesa, que é vista como tudo o que era mau, como a origem de todos os males. Rejeitando essa herança, o Brasil rejeita tudo o que é mau, porque há sempre esse lado mau em todas as coisas. Mas também perde todo o lado bom, e esse lado bom nunca é verdadeiramente assumido como sendo uma herança genuína brasileira.

Ela [vergonha da herança portuguesa] não é consciente, é até rejeitada. Na intelectualidade brasileira, a tendência é de não reconhecer isso.

Esse pensamento se sustenta hoje, quando há um interesse cada vez maior dos brasileiros por Portugal? Isso não existe em relação ao Portugal contemporâneo. Portugal contemporâneo é procurado pelos brasileiros. Muitos brasileiros trabalham em Portugal, gostam do país. Os ricos brasileiros vão para Portugal comprar casa.

Mas isso não apaga o antilusitanismo, que está profundamente enraizado a ponto de ser inconsciente. Por isso ele pode viajar incógnito a bordo dos aviões da TAP.

O aumento expressivo da comunidade brasileira em Portugal pode contribuir para diminuir o estranhamento entre os dois países? Eu acho que só isso não é suficiente. Poderá contribuir para a aproximação, mas pode também acentuar os preconceitos ou criar outras reações.

Eu conheço diplomatas que acentuam muito esse aspecto, que dizem que o estranhamento já está superado, que perguntam por que eu estou falando disso. Eles dizem que está tudo bem, que o comércio nunca foi tão elevado, que nunca houve intercâmbio tão grande de pessoas. Isso é muito conveniente para quem não quer fazer alguma coisa.

O desconforto brasileiro na relação com a herança portuguesa pode ser consequência da própria falta de discussão, em Portugal, sobre o legado de seu passado colonial? Sem dúvida nenhuma. Portugal ainda tem muito o que discutir sobre seu passado colonial. Nós estamos muito marcados por mais de 40 anos de salazarismo e da propaganda do regime, muito à base da exaltação dos feitos heroicos portugueses. Isso está na minha geração, nas gerações anteriores e nas gerações que ainda virão.

Só agora isso começa a ser contestado e questionado. Temos muita gente nova questionando tudo isso e vendo o outro lado da situação. Portugal precisa assumir, digamos, o lado maldito da sua herança, e não só o lado heroico e exaltante da grande aventura do século 16. Isso é absolutamente necessário.

O senhor menciona muitas vezes as piadas de português e as referências depreciativas aos lusitanos. Na sua experiência vivendo no país, o senhor se viu em muitas situações assim? Eu acho que há sempre um olhar por trás do olhar. Portanto, é inevitável que eu, na presença de brasileiros, saiba que eles estão me olhando com outro olhar além daquele que está exposto. Não tem como evitar isso, e é melhor falarmos sobre o assunto do que fingirmos que isso não existe.

Eu sei que, no fundo, assim que eu virar as costas, ou talvez mesmo na minha frente, haverá alguém que conte a anedota do português. Porque o brasileiro pode até perder o amigo, mas não perde a graça. O brasileiro parece que não quer reconhecer o pai pobre, não quer reconhecer de onde veio seu momento da origem. Acho que é prejudicial para os dois lados. Teríamos que ser mais verdadeiros e encarar olhos nos olhos essa realidade.

O senhor pontua que o Brasil não tem um feriado para assinalar a chegada dos portugueses. Acha que celebrar a data poderia contribuir para melhorar as relações entre os dois países? Os Estados Unidos celebram o dia de Colombo [feriado nacional em 12 de outubro, em celebração à chegada de Cristóvão Colombo ao continente americano]. Mas a celebração do dia de Colombo é uma controvérsia nos EUA e em vários países que foram colonizados pelos espanhóis.

Há uma contracorrente que contesta tudo, mas a verdade é que os EUA celebram o dia de Colombo. Por que é o Brasil não celebra o dia de Cabral? É o dia inaugural do processo que haveria de conduzir à sua própria constituição, que não é só a Independência. A Independência foi muito depois.

Acho que sim, um feriado poderia contribuir para reforçar a ideia de que a herança portuguesa faz parte dos brasileiros, poderia certamente contribuir para nos aproximar. Também poderia contribuir para criar uma imagem, em Portugal, de que o Brasil nos respeita afinal de contas.

O senhor atribui parte da responsabilidade a Portugal. O que o país pode fazer para reverter isso? A primeira coisa é o conhecimento da realidade como ela é, como ela se apresenta. E abandonar o blá-blá-blá da amizade luso-brasileira, que só existe nas quatro paredes dos eventos conjuntos. Logo que se sai dali, a realidade é completamente diferente. Isso só perturba, não adianta. É melhor nós aceitarmos a diferença para podermos superá-la.

Portugal teria de ter a consciência de que sua presença teria de ser muito mais profunda do que é hoje, de uma forma generalizada e em particular nos agentes culturais e diplomáticos portugueses.

Eu sugiro algumas coisas no livro, como a criação de um grande prêmio luso-brasileiro de jornalismo. A agência Lusa tem de voltar ao Brasil, a RTP tem de estar aqui de outra forma. Nesse momento, a relação é muito unilateral. Já era assim desde os 1950, quando eu era criança e via o Pato Donald, e agora é muito mais. A Globo é dominante nas novelas, nós sabemos tudo sobre o Brasil, mas o Brasil pouco sabe sobre Portugal.


Raio-x

Carlos Fino, 73
Nascido em Lisboa, estudou direito antes de ingressar no jornalismo na década de 1970. Foi correspondente internacional e de guerra pela RTP, com destaque para a cobertura da invasão americana do Iraque em 2003. Mudou-se para o Brasil em 2004, onde foi conselheiro de imprensa da embaixada de Portugal em Brasília até 2012.

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