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Defendo uma direita democrática no Chile, não uma direita das cavernas, diz Ariel Dorfman

Ensaísta chileno teme que eventual vitória de Kast desencoraje população a votar no plebiscito para aprovar a Constituição

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Buenos Aires

Ariel Dorfman era conselheiro de cultura do presidente socialista Salvador Allende. Na noite anterior ao golpe de Estado de 1973 no Chile, ele deveria estar trabalhando, mas trocou de horário com um colega.

Assim, conseguiu se esquivar do horror que tomou o palácio de La Moneda na madrugada de 11 de setembro e no dia seguinte, que terminaria com a morte de Allende e de dezenas de colaboradores.

Dali, Dorfman partiu para um longo exílio, durante o qual deu aulas nas universidades de Berkeley e Duke, nos EUA. Hoje, vive entre o Chile e Washington, a capital americana.

Ariel Dorfman, romancista, dramaturgo e acadêmico chileno-americano - Beowulf Sheehan/PEN American

Nascido na Argentina, de uma família chilena, o escritor agora também é cidadão americano. Dorfman, 79, mostra-se preocupado com o segundo turno da eleição presidencial em seu país. "Podemos dar um passo de retrocesso enorme, é quase inacreditável que isso possa acontecer, depois de tanto caminharmos e com tanto sofrimento", afirma ele, sobre a possibilidade da vitória do ultradireitista José Antonio Kast.

Autor, com Armand Mattelart, de "Para Ler o Pato Donald", clássico sobre o anti-imperialismo latino-americano, também escreveu romances e ensaios políticos. Dos EUA, ele falou à Folha por telefone.

As pesquisas mais recentes dão ligeira vantagem a Boric sobre Kast. Como vê o quadro atual da disputa? É importante reconhecer que Boric, no esforço para seguir no rumo da moderação, fez avanços importantes, admitiu erros em críticas antigas que havia feito à centro-esquerda. É parte de um processo de amadurecimento político de um candidato tão jovem. É preciso ver o quanto sua inexperiência e esses mesmos recuos não vão desgastar sua imagem, mas esse é o caminho que ele deveria seguir.

Só que não podemos subestimar o medo coletivo por trás de tantos eleitores que vão se aferrar à ideia de escolher um candidato que garanta a ordem, que mantenha proibições a chegadas de imigrantes e que seja contra a lei do aborto e das leis de diversidade. Esse medo coletivo, numa sociedade que teve três anos de fricções, tensões e bagunça nas ruas, é muito forte e poderá pender a favor de Kast.

A mudança de discurso de Boric para se mostrar duro com o narcotráfico e com a delinquência será eficiente? Se o plano dele para atacar esse problema for parecido ao de Kast, de intolerância, de envio de mais tropas, de estabelecer mais penas e esperar que assim se resolva a questão, não. O narcotráfico precisa e deve ser debatido pela esquerda, mas o enfoque deve ser o de fortalecer as comunidades, para que elas mesmas rejeitem o narcotráfico. Isso se faz fortalecendo o acesso à saúde e à educação, investindo na economia. A resposta tem de ser de uma comunidade apoiada pelo Estado.

Qual a sua expectativa em relação a Boric? Ao lado dele estão milhões de chilenos que votam e votarão nele para não voltar ao autoritarismo do passado, e para isso ele será vigiado e acompanhado pela memória dos que morreram lutando por um momento, uma alternativa, como essa, de mudar o Chile. Boric desponta como a pessoa que disse ser possível organizar o Estado que a insatisfação social rejeitou nas ruas em 2019. Só que essa é uma tarefa muito difícil, devido à amplitude e à profundidade das demandas.

E Kast? O voto em Kast é de chilenos que não querem olhar para a história, não querem fazer críticas a esse período —e isso lhes importa muito pouco. Tenho a impressão de que é um voto muito básico, de quem pede segurança em uma rotina com a economia organizada e sem conflitos nem com os mapuches ao sul nem com os imigrantes ao norte. Querem esse problema resolvido a todo custo. São pessoas que não acham necessário mudar tudo, porque têm medo do que virá depois.

A Constituinte sentirá algum efeito numa eventual vitória de Kast? Sim, é uma das coisas que, para muitos chilenos, não tinha de mudar. Para esse setor da sociedade, o fato de mulheres e mapuches, como a presidente da Constituinte, Elisa Loncón, terem poder abre uma janela de incertezas e medo. Até porque na raiz dessa questão está um problema de fundo no Chile, a distribuição injusta da terra por tantos anos.

O senhor é a favor dos que ainda protestam nas ruas por uma renúncia de Piñera? Não. Lutamos muito tempo pela democracia e pelo direito de escolher e temos de tirá-lo dali pelo voto, porque assim funcionam as democracias. Ante o cenário de que a direita que pode permanecer seja a direita de Kast, é mais do que necessário encontrar o caminho para fortalecer a direita moderada e democrática, a de nomes que hoje estão ligados ao Chile Vamos, [o senador Manuel] Ossandón, [o candidato presidencial Sebastián] Sichel e outros. Não há que se demonizar uma direita que tem valores democráticos, ela é parte da democracia chilena. Temos de repudiar a direita das cavernas que Kast representa.

Quais perigos o senhor vê numa vitória de Kast? Ele é uma figura perigosa. Os chilenos conseguiram transformar sua inquietação numa eleição constitucional, e agora esse órgão está trabalhando. O fato de Kast seguir com uma campanha para entorpecer o trabalho da Constituinte, de deslegitimá-la, é terrível para o país. Ele pode desencorajar as pessoas de votarem no plebiscito para aprovar a [nova] Constituição, e aí teremos de voltar a ser regidos pela Carta de Pinochet. É um atraso completo.


Raio-X

Ariel Dorfman, 79
Nascido em Buenos Aires, capital argentina, cresceu no Chile e também tem nacionalidade americana. É professor de literatura e estudos latino-americanos na Universidade Duke, na Carolina do Norte, e autor de várias obras —entre elas, o best-seller "Para ler o Pato Donald" (1977) e "Super-homem e seus Amigos do Peito". Atuou como conselheiro cultural do ex-presidente chileno Salvador Allende.

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